verdade viva °°°: agosto 2006

25.8.06

O que se segue a partir dos dois pontos foi feito em homenagem à Janaína Loureiro e sua cadelinha querida, hoje já falecida, cujo o nome inspirou o texto:

"Mas é que quando eu era pequeno lá em Larangape*, era miúdo sabe, passava uns aperto, má eu gostava memo era de jogá futebor cos meninim buchudim que nenheu. Me bate a sardade assim quando num tô pensando mais nim nada.
Aquela casinha de taipa e a rua de barro batido, por vez faltava inté a água, e mode que a gente tinha que punhá as cacimba nos quintar se avesse de chuvê pa enchê de chuva moiada coisa pouca.
A mãe ainda vive por lá por Larangape. Dia desses dê por mode que eu liguei pá saber como é que havia de tá a Situação. Situação era o nome da cachorra minha, busquei ela na rua pixototinha ainda, coisa pouca também, era mei amarelada, mei desbotada, mai era bonita a desgraçada. E a mãe disse que a Situação estava de mal a pior, chega me deu aqueles aperto no coração, chega as lágrima brota só de alembrar. A mãe disse que a Situação tava ruim, e que não havia agrado nem do prefeito de Larangape que fizesse a Situação meiorá.
O fato que se sucedeu foi que a denustrição (palavra bonita óia: de-nus-tri-ção) tomou conta da Situação, fez até a mãe e os irmão ficarem tristim pelos canto, fiquei sabendo que mesmo com fome eles num queria nem cumê...

...Ô Situação!
Por que tu não meiora pa mode todo mundo vivê feliz de novo?"





*Não consta em nenhum mapa existente

16.8.06

Entrei no ônibus como todos os dias, já conhecia todas aquelas expressões, rostos mal lavados, ainda amassados de noites bem dormidas, rostos pintados e olhares perdidos na imensidão de um novo dia. Eu era apenas mais uma de tantas.

Ônibus lotado, aquele empurra-empurra dos infernos (eu sei porque já estive em um, mas fica pra uma outra hora).

Depois daquela esfregação com outros corpos consegui, lá atrás, um espacinho até cômodo pra me segurar. Uma boa alma me ajudou com os livros e assim fiquei mais tranquila e aliviada. Conto quantas vezes consegui sentar no ônibus das sete da manhã, acho que pelo fato da minha parada ser a última do meu bairro.

A claridade me irrita, principalmente depois de madrugadas afogadas na escuridão. Óculos escuros sempre presentes, de tão escuros ninguém percebe em que direção estou a olhar ou se estou eu a dormir em pé.
Foi o meu querido óculos que me apresentou a Ele.
Percebi um olhar de meia idade tragando todo o meu corpo enquanto balançava a cada quebra-mola.

E nem pra disfarçar! Atrevido!

Ficou olhando durante todo o percurso, de cima a baixo e de um lado a outro. Eu já estava incomodada, mas ele não sabia que através do meu óculos eu estava a observá-lo também.

Ele notou minhas pernas definidas por debaixo daquela calça baixa, fixou-se no meu busto que me deu até medo de que algo caísse dali.

Sentia que ele respirava meu perfume sempre que, propositadamente, jogava meus cabelos de lado.

Eu sou tão nova, e ele tão mais ou menos!
De repente, antes o que era desprezo foi-se tornando paixão, e eu passei a ficar chateada quando o via olhando pela janela distraído.
Agora eu queria os seus olhares! Um olhar de quarenta e poucos, olhos marrons penetrantes, um grisalho charme na cabeça. Vestia jeans e camisa de botão verde.

Minha parada estava se aproximando cada vez mais, eu já estava impaciente, não o queria perder naquele momento, não queria aprender o significado da expressão "nunca mais".
Ele tocou meu braço:

- Quer sentar? (Que voz!)
- Não, obrigada, já vou descer! (Será que fiz bem?)
- A gente poderia se encontrar? (Ai meu Deus, ele quer marcar um encontro! E agora? Minha parada chegou!)

Como por impulso, abri minha carteira e entreguei-lhe um pedaço de papel dobrado, nesse momento o vi sorrir, todo lindo e retribuí ao sorriso. Saltei, e na calçada, olhei a última vez para o interior do ônibus já semi-vazio, enxerguei uma expressão rude em sua face ao ler meu cartão:

Rubens Alfredo
9499-3652

Atendo em domicílio.



* Ofereço esse texto à amiga Jana, que batizou o personagem.

13.8.06

Matheus é um garotinho de quatro anos, um tanto quanto agitado, cabelinhos louros e sotaquezinho pernambucano "e apoi". Já aprendeu a escrever seu nome, e por incrível que pareça de uma maneira bem original e criativa: de cabeça para baixo.
Quando ele escreve o M ele faz um W, quando dizem que está errado ele imediatamente fica emburrado e vira a folha ao contrário para provar que está certo.

Dia desses sua mãe inventou de dialogar sobre irmãos:
- Matheus, você quer um irmãozinho?
- Por que mamãe? Você quer que eu tenha um irmãozinho?
- Eu não.
- Por que?
- Porque dá muito trabalho.
- Mas eu quero.
- Mas agora não vai ter.

Quando o pai se aproxima, ele mantém os olhos cheios d'água e pede carinhosamente:
- Papai, compra um irmãozinho pra mim!!!

inocência dos anos 2000... há, sim, ainda há!

3.8.06

Tão somente minha culpa


O Charlie desde menino sofria um mal terrível. Vivia para tomarem-lhe as coisas.

Lembro seu primeiro dia de aula, estava ele a sorrir com sua pequena mochila alaranjada a combinar com a lancheirinha onde sua mãe punha delicadamente todos os dias os biscoitinhos preferidos com o suco de maçã receita da vovó.
Os coleguinhas do Charlie abusavam de sua boa alminha e sempre tomavam-lhe o lanche.
Certa vez chegou em casa sem a sua pequena mochila e a lancheirinha.

Os anos foram-se e Charlie já era um adolescente. Tinha o estranho hábito de andar pelas sombras, sempre encostado aos muros das casas e edifícios. Certa vez esperavam-no à esquina para tomarem-lhe os tênis novinhos em folha. Neste mesmo dia tomaram-lhe também o relógio já surrado e alguns livros da biblioteca da escola.

Charlie já era conhecido como "penumbra" por onde passava por ter pavor de andar no meio da rua. Só caminhava pelos cantos e não gostava de ser reparado pelas pessoas, então, preferia o escuro. Mas era sempre no escuro onde tomavam-lhe suas coisinhas.

Outra vez tomaram-lhe até a rosa perfumada que estava a levar à Neuma menina bonita da rua de cima.

Já havia deixado de ser somente o "Charlie penumbra" e passara a ser o "Charlie penumbra má-sorte"

Charlie já havia se acostumado. Até que um dia tomaram-lhe sua cuequinha de algodão. Se não fossem as sombras da sua vida seria agora conhecido como "Charlie penumbra má-sorte sem cuecas".
A partir desse dia Charlie resolveu ouvir meus conselhos. Passou a andar iluminado e pelo meio da rua, para que todos o vissem e para que os estranhos não lhe tomassem mais nada pelas esquinas.

É...

Se acostumou tanto a andar pelo meio da rua que o bondoso "Charlie penumbra má-sorte sem cuecas" acabou morrendo atropelado.

2.8.06

Quaisquer semelhanças com a vida real não são meras coincidências.

Já devia estar na faixa dos quarenta beirando os cinquenta, apesar da certeza de que estava desfrutando da mais pura jovialidade. Esquecera das milhas de quilômetros rodados.

Tinha um corpo redondo e estranho, seios murchos e pêlos nas pernas. A sandália preta (já cinza de tanto gasto) de salto alto já havia lhe deixado problemas circulatórios, visto que apertava-lhe a joanete e os dedinhos encardidos, lar de unhas consideravelmente mal feitas. Não se observava higiene.

Tinha cabelos negros e pegajosos de creme (encomendados à Creuza Bartira, dona de um simples salão na Av. Bernardo Vieira). Sempre dispostos em forma de coque.

Em sua testa despelavam grotescas capas epteliais que se misturavam às caspas transbordantes do couro cabeludo.
Sua falecida mãe já havia dito um dia:

- É seborréia. Ê menina pra num gostar de se ajeitar!

Mas Lucinha era assim. Não adiantava empurrar pro banho que não tinha jeito. Dava até dó de ouvir tanto chororô.

Agora lá estava ela - Dona Lúcia, ou melhor, Dona secretária Lúcia. Era como gostava de ser chamada.
Detinha uma expressão rude, ar ofegante, narinas de dragão que mais pareciam expelir fogo.

Gostava de gastar seu medíocre tempo sendo secretária de não-sei-o-quê na diretoria daquele hospital público.

Atendia a algumas ligações e sentia-se feliz por ser útil. Apesar de sempre reclamar ao ouvir o "triiiiim" do aparelho.

A monotonia do departamento em que estava inserida levara-a ao mau hábito de passar horas e horas jogando freecell em um computador com informações do mundo todo, mas ela não sabia se aventurar pela internet.

Eu sentia mais pena da Dona secretária Lúcia do que da doce Macabéa. Ambas nada e ninguém, recolhidas a uma vida de pouca, quase nenhuma significância.

Dona secretária Lúcia quando estava desacompanhada de mim mantinha estrategicamente um radinho portátil ao alcance das suas mãos e o silêncio do recinto era quebrado. Ora pelos cantores ora pela sua própria voz estridente, aguda e totalmente desagradável.
Até a arara do vizinho da Rebeca soava melhor.

Mas àquela Lucinha sentia-se livre quando se punha a cantar. Mas, afinal, o que a aprisionava?
Levava uma vida pacata, sem muitas emoções e era feliz em si, porque não conhecia muitas coisas além do que havia no seu mundo fútil de jogadora de cartas.