verdade viva °°°: janeiro 2010

18.1.10

Começou quando perguntei qual era a banda que tava tocando no carro do Jimmy enquanto íamos pela rota do sol a caminho do show do Monobloco. O Jimmy, com sua gata ao lado, dirigia agressivamente enquanto a gente, mulheres, nos divertíamos sorridentes conversando sobre os assuntos mais variados possíveis. Na verdade eu estava calada e nada contente, desconcentrada no interior do carro, olhando pela janela e tentando descobrir em que momento eu deixei cair meus pedaços por aí. Alguém respondeu, "É o Ray". Ah! Claro! Como pude esquecer daquele geniozinho americano do soul. Ultimamente tenho escutado bastante música negra, depois daquele lance do blues e tal. Até o calypso do Harry Belafonte eu conheci.

Escutei algo sobre exercícios físicos, mais precisamente quando comentaram que havia uma menina que era boa no jump como ninguém. Ela subia e tátátátá, dava todo o gás e nem aparentava cansaço no final da série. É isso aí, devia sair aplaudida. Eu também fiquei me imaginando sendo boa em alguma coisa. Talvez, tivessem orgulho, prestigiassem. Daí eu me sentiria mais... feliz?

Escutei a maior parte do tempo, mas não me sentia lá, presente, vivendo o ritmo frenético que a prévia de um show pede. Mais precisamente daquele show dançante.

Escondia umas gotinhas salgadas por detrás dos óculos escuros e fingia que tava ligada em tudo. Nada de mente sã. Numa noite que tinha tudo para ser normal como as outras noites eu estava lá, atrás de uma grade branca observando a noite. Tentando enxergar alguma luz no céu que piscasse e me provasse que minha parte quebrada tem jeito. Piscou. O esqueleto do que seria uma pipa antiga enroscada na fiação elétrica me lembrou o quanto o simples pode ser bonito e triste. Queria minha câmera naquela hora, mas alguma coisa atrapalhava minha perfeita visão. Eu gostaria de retribuir um amor. Eu gostaria que retribuissem um amor.

Tentei visualizar meu futuro daqui para frente, e a falta que vai existir nele. A falta de prazer em convidar alguém para ir ao cinema duas vezes na semana assistir Sherlock Holmes e Avatar. A falta de prazer em convidar alguém para ir tomar açaí lá no Posto Planalto. A falta de prazer em convidar alguém para ir assistir um show. A falta de prazer em convidar alguém para um mergulho no mar de Camurupim. A falta de prazer em convidar alguém para um jogo idiota. A falta. Ah, falta.

10.1.10

Conduzi meus passos trôpegos naquela lama derivada de uma pós chuva na cidade do sol. Eu sabia que havia um chuveiro em algum lugar próximo àquela varanda, mas o tempo nublado havia adiantado o nascimento da noite e isso dificultou tanto minha vida que precisei seguir com atenção necessária à poesia desajustada das gotas que caíam leves de um chuveiro quase quebrado. Encontrei-o.

Lavei-me como se fosse a última vez. Precisava me livrar de toda aquela lama, de toda aquela areia, de toda aquela saliva e de todo aquele tempo amarelado que tinha coberto minha pele durante todo o dia.

Fechei os olhos e ouvi negros cantarem blues, com seus suspensórios retrôs, gravatinhas e arcadas dentárias branquinhas, branquinhas. Entre cigarros, doses de uísque e o odor da embriaguês estava ela - a gaita - e o seu par perfeito. Espremia-se com tesão naquela devoradora boca e gritava deliciada naquela noite chuvosa, sem se importar com a vizinhança.

Ouvi tudo de olhos fechados enquanto tremia de frio, desejando que tudo se desmaterializasse de repente e que, após ter o que restou de mim descido pelo ralo, me sobrasse apenas uma voz negra de blues, romântica, baixinha, debaixo de um cobertor que balançasse com a rede em harmonia bem ali naquela varandinha abandonada.

7.1.10

Madeline sente prazer com as pequenas alegrias que já foram perdidas. Consegue relaxar ao imaginar o calor do útero materno que lhe pertenceu, ou brinca de se lembrar o quanto deve ter sido gostoso ter seus pezinhos recém chegados ao mundo aquecidos com meias amarelas de croche. Amarela é sua cor preferida.

Madeline quando precisa refletir sobre o círculo que consiste a sua vida, dirige. Nem sempre em alta velocidade. Gosta de curvas fechadas porque sente prazer com o deslizar do volante sob suas mãos.

Sublime o seu rebolado. Remexe os quadris com tanta veemência até sentir o sangue quente queimar-lhe as veias, e então, se joga de costas ao chão e gargalha alto, feito uma louca.

Madeline é estranha.

Os amigos a chamam de Diaz. E tudo exatamente por causa da Cameron, sua sósia. "Vai para Hollywood, vai ser rica!", imploram os zombeteiros amigos. Madeline pouco se importa com riqueza, apesar de querer e gostar de se sentir confortável mesmo se precisar passar uma semana caminhando.

Ela gosta dos botecos sujos das rodoviárias. Tem cheiro de dinheiro sujo. Tem cheiro de banheiro sujo. Senta, pede uma cachaça e fica observando as pessoas irem e virem de todas as partes. Nem bebe, mas gosta do cenário. "O que se passa na cabeça daquela gorda neste momento?".

Madeline passava horas se preocupando com absurdos, como o que faz uma pessoa preferir a cor marrom à roxa.

Uma vez, numa festa, alisou os cabelos pretos de um rapaz e sentiu um atordoado desejo de tê-lo nos braços, mas em vez de agarrá-lo com todos os braços que podia entrou no carro e foi embora. Aqueles cabelos ficariam para sempre em suas mãos. Bonito rapaz.

Toda vez que viajava para um lugar impressionante , mesmo não sendo religiosa, agradecia ao bom Deus pela oportunidade e engolia sequencialmente as lágrimas que tentavam lhe escalar a garganta.
Já foi emotiva ao ponto de julgar-se frígida. Sofreu, até aparecer aquele que lhe curou os medos e controlou a sua ansiedade, apesar de ter sofrido um pouco mais quando foi mandada embora para nunca mais voltar.

Madeline aprendeu com Shakespeare que praticar a paciência é uma virtude. Quebra o equivalente a uma caixa de palitos de dente por turno.

Ela toca, corre e titubeia pelos ares. Só porque gosta de titubear, afinal, ela nem sabe ao certo o que isso quer dizer. Repete a palavra fralda cinco ou seis vezes por dia e nega seu sonho descontrolado de um dia ser mãe.
Suas amigas quase todas são mães. Madeline não quer ser apenas uma mãe, mas duas.

É responsável. Sabe da hora que o corpo precisa descansar, apesar de achar que isso não tem muito a ver com responsabilidade e sim com necessidade, mas Madeline não admite a falta de razão, e quando isso acontece, sente-se pesada.

Tem dificuldades em apontar opiniões. Cala-se para parecer menos tonta do que possam supor e com certeza seu sotaque carregado contribuiria. Madeline não fala pelos cotovelos, porque cotovelos ela só tem dois. Madeline fala pelos dedos, melhor, pelos cabelos. Por onde passa, o odor das suas palavras impressiona.

Curte flores e bombons. Nunca em excesso. Madeline odeia excessos. Quando acontece, vomita. Mas sempre acontece involuntariamente. De excesso já basta o amor que não existe.
Se fosse corajosa, amaria a todos.