verdade viva °°°: setembro 2008

19.9.08

E dez dias depois regresso reabrindo as gavetas preenchidas de lembranças empoeiradas de fatos bem pessoais. Você não perceberia se é real ou ficção, perceberia?

Como um futuro amigo (se assim acontecer e se assim estiver traçado) lhe contará (a mim) que não precisa sentir vergonha e nem se preocupar porque os outros (você, por exemplo) não conhecem suas (minhas) intenções, mesmo quando explícitas em suas (minhas) palavras haverá aquele (você) que não irá compreender patavina. Ou até mesmo aquela idéia que por ser em linha reta será percebida como suas infindas curvas.

Abstenho-me da preocupação. Quanto à vergonha - confesso - a luta é constante. Ainda conto minhas pegadas, a prova real de que ainda nem sequer passei do segundo quarteirão pois elas ainda nem se perdem de vista.

Minha coleção de nãos já passa do quinto álbum. Perdi a conta das figurinhas pares e ímpares. Não quero, não vou, não mexa aí, ainda não, não tô afim, hoje não, não é aqui, não fala isso, não vote nele, não saia hoje, não fique triste, não...

Eu sei que seria impossível viver sem nãos, e digo isso porque tem o Teteco que já tem seis anos e viraria o mundo ao avesso se só ouvisse sins. É, pensando bem pode ser divertido um mundo ao contrário, se é que não já está.

Segundo a Marisa o não não fica bem no coração. Ô, Marisa! Não seja tolinha.

Mas amanhã de manhã vou tentar arrumar tudo, e só estou deixando pra amanhã porque hoje me bateu uma saudade que me tira a capacidade de fazer esforços físicos e psicológicos. E amanhã vou fazer um café pra você e encher um copo de leite pra mim. Talvez a gente combine ou talvez tudo termine.

9.9.08

Joaquim Nabucodonosor, 94, recordou amargamente o dia em que comeu ensopado de porco pela última vez. Refletindo nostalgia em seu olhar, sentou-se na cadeira maciça de balanço, tossiu por uns dois minutos levando sempre seu lenço encardido à boca, e cuspiu de uma só vez as lembranças de sua bem-aventurada juventude.

Aos dois anos lamentou-se pela primeira vez "ai de mim", como ouvira e espalhara o fato sua madrinha, batizando-o em seguida Joaquim. Segundo o padrinho o menino nem abriu a boca, "ele estava gripado".

Aos doze anos iniciou-se na experimentação sexual com animais, vindo daí o sobrenome e até hoje não enxergando qualquer semelhança devida.

Aos vinte, já casado, continuava sem dinheiro, sem carroça, sem cavalo e sem caráter. Só tinha a Zumira para lhe lavar as ceroulas.

Joaquim aos vinte e seis era um exímio vendedor de aves. Galos, marrecos, patos, papagaios, rolinhas e periquitos. Com oito meses no ramo conseguiu comprar sua primeira geladeira. O fogão já existia devido ao dom do artesanato. Herança do tio Tomé, que desde menino não acreditava no que seus olhos não viam.

Joaquim sabia das coisas. Só não imaginava que um dia um porco haveria de lhe perturbar o sono.

Zumira, ao completar trinta anos ganhou um porco chamado Focinho num bingo que todo domingo acontecia após a novena na praça de barro batido.

Focinho arranjou um novo lar com o casal e Joaquim engordou tanto o coitado do animal que ele passou a ser chamado de Focinho Roliço. Quem não entendia de animal bem nutrido não sabia se Roliço era o focinho ou se o Focinho é que era roliço.

A moda da época havia se tornado a tal da televisão em cores e Joaquim resolveu ser o primeiro daquela comunidade rural. Trocou seu negócio de aves por uma pequenina TV, para desespero de Zumira que tinha um relacionamento sólido e confidente com Marisco, o papagaio vermelho.

Joaquim, então, cheio de idéias, passou a cobrar entrada em sua sala de estar 6x8 para a vizinhança invejosa assistir às novelas de aventura da época. Essa prática tornou-se o sustento. Um belo dia eis que deu-se a desgraça. (né, chu?)*

Joaquim resolveu se ausentar de casa por doze horas e vinte e dois segundos, deixando a televisão em cima da cômoda à segurança do super cão de guarda Focinho Roliço.
Focinho, na lamúria por ter sido substituído por àquela aberração ilusótica passou duas horas dando bundadinhas na cômoda até, BLAM, derrubá-la. Com seu focinho, não o nome mas o aspirador, cavou, cavou, cavou a areia batida da sala de estar e enterrou a televisão do Joinc, o apelido amoroso que pusera em seu dono. Silêncio.

Joaquim ao regressar deu por falta assim que abriu a porta. Só via um remexido de terra e o gordo Focinho de ventre pro ar. Se Joaquim ainda tivesse as aves, talvez encontrasse-as de papo e não de ventre.

Joaquim ficou puto que só a moléstia, pegou a peixeira e danou-se no meio do mundo atrás do gatuno. Nem cheiro. Nem sombra. Nem voz. Nem.

Passaram-se seis meses para Joaquim notar um cabo emborrachado preto no cantinho da parede de taipa. Pegou o ciscador e começou a desenterrar, não!, o que é isso? Foi ficando cada vez mais rubro conforme via o que não queria ver para não acreditar: uma televisão marrom sem nenhuma mais funcionalidade, nem mesmo decorativa.
Como uma visão projetada do inferno estava Focinho, eriçado e em gargalhadas naquele picadeiro.

Joaquim sentiu tanta raiva que mandou Zumira cozinhar o rabicó, mas até hoje Joaquim confessa sentir o espírito do porco em sua mente toda vez que se deita para dormir.


*Nota: interferência do autor.

2.9.08

Hoje, no meio daquela trilha, percebendo aquelas diferentes tonalidades de verde das folhas das inúmeras árvores, lembrei da minha infância. Nela me perdia subindo nos galhos mais altos para roubar os jambos dos vizinhos, as mangas, goiabas e isso sem falar nos doces de jaca que os meus irmãos, eficientes jovens cozinheiros, criavam. Eles me faziam acreditar que eu era a garotinha mais forte do mundo e me colocavam, inocentemente, pra carregar duas ou três jacas naqueles braços magros dos oito anos de idade de uma só vez. Eu chegava em casa exausta, suada, grudenta e exalando aquele perfume de fruta único no mundo. E porque achavam pouco, ainda me obrigavam a comer daquele doce até gostar.

Mas na minha infância atual tenho lembrado quase todos os dias da história da minha tia-avó, que eu nem cheguei sequer a ver algum retrato e me certificar de que ela tinha mesmo olhos azuis, mas pelas gerações a que segui me foram muito bem chegadas informações que seguramente me diziam pra eu ter cuidado para não me exceder com os doces de jaca. A minha tia-avó comeu tanto deles que dormiu por oito anos, aprisionada pelos seus sonhos, bem no auge da sua juventude. Quando acordou, a única lembrança lúcida dos seus sonhos era o barulho que o roçado dos galhos da jaqueira fazia pela janela do seu quarto.

Há uns onze anos não como jaca, só piso em cima.

Não como por não gostar ou por achar que dormir demais seja algum fator da herança genética, mas por medo mesmo de acordar muitos anos depois e depois de muito sonhar só conseguir lembrar de um mísero roça-roça de galhos.