À personagem desta narrativa vou chamá-la Maria. Não por ser ela uma santa. Mas por ser nome comum. De rico e de pobre. De alguém e de ninguém.
Poderia até ser das Dores, pela história de vida. Ou poderia ser das Graças, pela simpatia que esbanja. Mas que seja só Maria, sem outro de pia.
Que tudo escrito aqui não passe de ficção, conheci Maria na fila do banheiro do Albergue Municipal, estava ela esperando para tomar banho. Era noite de lua grande e bonita no céu, havia fila na calçada lá do lado de fora do recinto, mas só entrariam 60 desabrigados. Maria foi logo uma das primeiras. Depois de ter sido revistada na entrada (nada de drogas e de armas) ganhou seu kit higiene: uma toalha, um sabonetinho sem muito cheiro, um lençol com elástico para forrar a cama e um lençol sem elástico para se cobrir.
Conseguir conversar com Maria requeriu um certo tempo. No início ela parecia arredia, mulher braba, que não demonstra sentir medo de ninguém. É de inchar até o peito. Tava na fila do banheiro xingando uma tal de dona louca e, como não obteve resposta, saiu resmungando, virando de costas e sumindo por trás dos outros desabrigados que estavam muito ocupados assistindo ao noticiário sobre o falecimento daquele cantor famoso que colecionava calcinhas.
Logo voltou, atreveu-se com uns gritos altos de desdém aos que circulavam por ali, pela área de lavar roupa, e entrou no banheiro. Voltou com seus cachos molhados, já penteados, na altura do ombro. Vestia o mesmo vestido cinza e desbotado de antes, mas havia nela uma nova expressão. Uma satisfação inegável de bem estar, que às vezes só um banho proporciona. Era chegada a hora da aproximação.
(É incrivelmente curiosa a mudança de espírito daqueles moradores de rua depois de um banho. Uma felicidade desmedida que se revela nos poucos dentes que têm. Se transformam em seres multicoloridos depois que deixam escorrer pelo ralo aquela cor suja e comum que os tatua dia a dia.)
- Bonita flor, essa no seu cabelo.
- Fui eu merma que fiz. Gostasse foi?
Resolvi começar pela flor em seu cabelo, que já identificava uma certa vaidade. Foi a porta que se abriu para que eu pudesse percorrer um pouco a história daquela Maria. Nada mais de brabeza, revelou-se ali uma mulher que teve uma história maltratada pelas suas próprias mãos, mas que ainda assim se faz dona de uma sensatez assustadora.
Contou-me parte de sua vida sem esboçar emoção, como se a rua lhe tivesse transformado num ser humano pétreo.
Maria nasceu em Caicó, município do Rio Grande do Norte. Era filha de uma mãe submissa e de um pai caraubense, pertencente a uma família ferrenha, daquelas boas de briga. Até os vinte anos suportou com amargura as surras que levava do pai pelos motivos mais banais que se pode imaginar, como derramar água no chão. Suportou as feridas de sua mãe e as suas próprias com a determinação de que logo arranjaria um meio de transformar aquela realidade. E arranjou mesmo.
Com pouco mais de vinte anos conheceu duas traficantes que a iniciaram no mundo das drogas. Maria experimentou, gostou e levou para a sua rotina o sabor vegetal da maconha. Depois que seu pai lhe batia, acendia um baseado e deixava que as dores fossem embora, sorrindo. Gostou tanto que resolveu associar-se às negociantes de bagulhos. Vendia maconha com tanta facilidade como se já tivesse nascido vendedora de drogas. Era discreta, mas firme. Chegou a experimentar a cocaína, mas ao perder o sono sentiu-se aterrorizada e desistiu de imediato. Por essa época (findos anos 90) ela já não morava mais em casa. Já havia se perdido da vida dos pais por opção.
Acontece que em uma das transações de negócios com suas novas sócias, Maria percebeu que estava sendo enganada, e como já havia proposto a si mesma não ser mais humilhada por ninguém, arranjou um revólver calibre 38 e não contou conversa. Foram dois disparos para dar cabo de duas vidas imundas.
Maria foi presa.
Mas antes de ser presa ainda sofreu um atentado. Um dos filhos das falecidas inventou de vingar a morte da mãe e atirou em Maria pelas costas, covardemente. Migalhas de um projétil ainda se encontram alojadas em seu crânio, conferindo à Maria uma espécie de tique nervoso. Ela pisca e encolhe o olhinho direito descontroladamente, como se estivesse muito incomodada com uma inexistente claridade.
Maria passou dez anos na prisão.
Mas não pense que sua estadia na penitenciária foi de toda ruim. Não. Fez amizades com gente importante. Tornou-se amiga de delegados de renome, de respeito. E não só deles, das esposas e filhos deles. Sentia-se protegida. Tinha banho, comida, cama e o respeito das companheiras de cela.
Há pouco mais de três anos foi solta e teve a oportunidade de logo trabalhar como assistente de serviços gerais num órgão público. Oportunidade esta, dada por uma das esposas de um dos delegados que conhecera quando fora detenta. Com o pequeno salário e as ajudas de custo que lhe davam conseguia uma bagatela de mil reais mensais. Alugou um espaço pouco maior que um quartinho num edifício da cidade e aos poucos foi comprando suas coisinhas: uma cama, um fogão, uma geladeira, uma TV pequena, um som com toca CD, algumas panelas e uma mesinha de centro, que ficava ao lado da sua cama, como uma cabeceira. Já planejava realizar seu sonho de comprar uma máquina de costura "Ainda vou montar meu ateliê, mulher. E vou ter minhas bordadeira! É o meu sonho. Eu quero é ser chique, gente fina." quando a desgraça lhe bateu à porta mais uma vez.
Maria desabafou que ao longo da vida uma pessoa conhece muita gente boa, mas também conhece muita "alma sebosa" - palavras dela - que chegam perto para sugar toda a inocência que poucos recuperam após o cárcere.
As almas sebosas bateram em sua porta, e ela abriu. Numa aventura com um morador de rua que fingia trabalhar nas redondezas do seu bairro, Maria foi levada novamente ao fantástico mundo das drogas. E quando o crack lhe fez vender seus primeiros móveis ela já não soube mais voltar atrás. E antes que toda sua dignidade fosse fumada, pediu demissão do seu emprego, por medo de ser a ladra do que fora sua maior oportunidade na vida.
Maria passou a morar nas ruas há pouco mais de um ano. Onde o céu é o seu teto, depende da gente da cidade para se vestir, para comer, para usar a sua droga. Faz 4 meses que não fuma mais o crack, mas ainda não se considera uma ex-viciada. Maria tornou-se prisioneira de si mesma. Pega remédios gratuitos (no centro de apoio aos viciados em drogas) que facilitam seu desapego, diminuem sua libido, retardam sua vontade. Vive na filosofia do "não vou usar só por hoje".
Ganhou um fogão de alguma caridade.
Está juntando dinheiro para comprar um botijão de gás e depois quer montar um carrinho de batata-frita para vender na porta daquele colégio perto do teatro. Sabe que é boa vendedora. E sabe que quando tiver bem muito dinheiro vai logo comprar sua máquina de costura e vai montar o seu ateliê, começando a fazer florzinhas de chita para o cabelo. Vai realizar o seu sonho...
E só por hoje e pelos dias próximos, vai andar pelas redondezas do Albergue, onde novamente está tendo banho, comida, cama e o respeito de muitos moradores de rua.
1 Comments:
E que bom que existem pessoas como você, para contar histórias como a dela. Ou toda essa narrativa emocionante se perderia pelos vãos dos bueiros, pelos becos e ruas. Parabéns. Muito bem escrito.
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