verdade viva °°°: maio 2009

28.5.09

Alarme às sete e quinze da manhã acompanhado da tradicional vitamina de banana da Dona Nil.
A indisposição acompanhada da obrigação de ir trabalhar num tempo de chuva, de nuvens e de ronco.
Carona diária com o irmão mais velho acompanhada do guarda-chuva azul, presente de aniversário da Dodô.

Foi uma manhã como as outras, exceto a chuva. Não dava pra encher saquinhos de areia, plantar, coletar sementes, fotografar ou ir fazer trilha. Os policiais nunca querem se molhar e os curiosos e aventureiros por mais irônico que seja nunca querem escorregar nas folhas coloridas. As serpentes nunca navegam na areia e as caranguejeiras não saem das suas tocas. Eu amo as manhãs de chuva. O tempo frio me devolve ao Belo Horizonte, o lugar onde tinha o céu a cair diariamente e onde eu resolvi passar as férias de fim de ano.

As manhãs de chuva me dissolvem como algodão doce em saliva quente. Aguça meus sentidos e eu farejo minha infância na vila naval de Belém, correndo na chuva das quatro da tarde ou me escondendo dela dentro da capinha amarela.

Pena é ter a realidade como inimiga da paz e do bem estar.
A felicidade da chuva foi se subtraindo até a ânsia de vômito que me acompanhou durante todo o dia juntamente com uma zabumba que me enfiaram pelos ouvidos até o cérebro.
Foto e fonofobia, falta de apetite e intolerância me deixou um caco. Séria, inacessível. O esforço parcialmente anulado pelo mau funcionamento das máquinas no trabalho vespertino acumulou no meu peito uma energia negativa intratável e o bolo gelado na hora do lanche me lembrou um dos vocábulos preferidos: disgusting.

A cefaléia me impediu de qualquer concentração durante a aula. O que é que tem a surdez congênita e a ciclopia?
De repente uma mensagem via sms me convidava para ir assistir o Distro¹ num evento do curso de Publicidade na Universidade Potiguar. Pensei "Por que não? O lance é reanimar!". Queria me curar das mazelas de um dia cheio e impiedoso. Saí da aula e fui conferir o evento.

Infelizmente cheguei depois da apresentação da banda. Senti tudo meio esquisito. Senti hostilidades e perturbações. Calças, camisetas quadriculadas, casaquinhos fashions e toquinhas de cabelo coloridas com óculos de grau anti-reflexo passeavam de uma ponta a outra com baforadas de cigarro e goles escondidos de bebidas alcoólicas. O estilo dos futuros publicitários. Um cara desafinado tocava Planta e Raiz e Zeca Baleiro no violão elétrico. Por pouco não rolou um Charlie Brown Jr.


O meu endométrio descamava, isquemiado, pela contração das minhas artérias espiraladas: antojo e queda de pressão. Frio.
Dirigi encolhendo os olhos, fugindo da claridade dos faróis e dos sinais. Dirigi com o vidro fechado, sentindo frio e evitando o barulho intenso externo. Estava chegando atrasada em mais um compromisso. Pelo menos uma notícia boa: Congratulations, You improved your English.

Finalmente casa. Agora eu poderia estudar tranquila para a prova de Ecologia Comportamental, poderia falar com bases científicas sobre Altruísmo e Egoísmo; Sobre a equação de Hamilton; Sobre cuidado parental e os Dilemas de vida dos animais, mas infelizmente a cefaléia me parasitava sugando todo o resto de paciência e vontade de aprender, sugando todo o resto são que minha mente ainda preservava.
Às duas da manhã dei baixa no Hospital São Lucas. Fui consultada por um neurologista cinquentão e duas enfermeiras que me serviram pra trocar o soro, me cobrir e dar o medicamento. Não lembro muito bem o que aconteceu, eu não conseguia abrir os olhos e não escutava mais nada direito. Ouvia palavras pronunciadas à toa "dipirona", "enxaqueca", "estresse" bem enquanto me transformava num ser humano letárgico, apático.






¹Distro é: Rafaum Costa: guitarra e voz; Vinícius Menna: guitarra e voz; Beloni Uchoa: baixo; Artur Araújo: bateria. Contatos: http://www.myspace.com/distrorock distroband@hotmail.com (84) 88031396.

Revisão de Texto: Priscila Adélia (jornalismo) e Gustavo Sena (medicina).

21.5.09


Segunda-feira a prefeitura de Parnamirim me convidou pra trabalhar com o cadastramento dos interessados em um novo programa do Governo Federal: Minha Casa Minha Vida. Podem participar famílias que possuem ou não renda mensal (de até 3 salários mínimos) e o objetivo é construir uma base de dados dessa população mais carente pra que as famílias selecionadas através da Caixa Econômica Federal consigam ter suas próprias casas por um custo baixo, bastante baixo. Cerca de 19.000 casas serão construídas para este fim em alguns municípios do RN.

Mas não é disso que quero tratar.

Eu tô começando a achar interessante o fato de atrair pessoas incomuns. Durante os dois primeiros dias no novo emprego nada me emocionou mais que um copo de suco de goiaba e biscoitos cream-cracker. Lá na farmácia eu não tinha regalias, só tinha um ar-condicionado. Lá no Parque eu não tenho regalias, a não ser que eu as compre. Trabalhar com cadastramento em Escola Municipal tem sido deveras revigorante. Hoje rolou até um sanduíche natural com guaraná. Enfim, descartando a subjetividade, eu estava falando de pessoas incomuns.

Incomum. De cara foi possível detectar alguma deficiência na maneira de olhar e de caminhar. Chegou dando ordens:
- Faça meu cadastro, minha filha. Faça logo que eu tô passando meio mal.
- Eu preciso da xerox da sua identidade, do seu CPF e do seu comprovante de residência.

Não me deu a mínima atenção e sem vírgulas desembestou a falar:

- Mande ligeiro aquele homem lá no portão tirar as cópias. Tá muito calor. Eu tô meia doente. Saí de casa aperriadinha atrás dessa sopa.
- Sopa???
- É. A sopa que vocês vão distribuir.
- Senhora, não existe nenhuma sopa. É um cadastro que a senhora faz pra tentar conseguir uma casa.
- Pois faça aí meu cadastro pra receber a sopa.
- Senhora, não tem sopa.
- Me espere que eu vou tirar as cópias.

Saiu.
Em 15 minutos ela me volta cheia de papéis na mão. Tirou cópia até de cupom fiscal e jogou tudo em cima da mesa me mandando procurar o que interessava.

- Dona Jucilene, preciso do seu telefone para contato.
- É, tá aqui ó.
- Não, dona Jucilene. Esse número é o seu CPF.
- Então é esse aqui.
- Não, senhora. Esse número é a data do seu nascimento.
- E o que é que você quer?
- O seu telefone.
- É 123456789-10!

Exatamente. Ela contou até 10 e repetiu três vezes pra que eu me certificasse que era aquele mesmo.

Decidi fazer o cadastro dela sem o telefone. Já tava começando a simpatizar com aquele olhar perdido, sonolento, que nunca, nunca me olhou nos olhos. Só olhou o chão. Ao final recomendei que retornasse com o telefone para contato ou não serviria de nada ter feito o cadastro. Ela perguntou contente:

- Deu certo? Vou receber a sopa agora?
- Senhora, não tem sopa.

Jucilene respirou nostálgica e me contou que quando era criança apanhava dos irmãos até sangrar, que várias vezes ouvia-os confabulando um homicídio e que quando saía correndo nua pela casa eles iam atrás dela jogando pedras como se ela fosse bruxa. O costume de levar pedradas persiste até hoje. Aos 46 anos, Jucilene acorda quase todos os dias se protegendo da chuva de pedras que costuma ser a diversão dos sobrinhos.

Por ter sido nosofóbica quando menina, acabou adquirindo inconsciente e involuntariamente um leve retardo mental que não a impediu de trabalhar. Covardemente a empresa forçou-a a aposentar-se por invalidez antes dos 30 só porque ao invés de pregar botões nas camisas estava pregando tostões.

Contou que mora na Avenida Maria Lacerda e que num desses dias um assaltante invadiu sua casa com um canivete:
- Não sei como alguém comete uma coisa errada dessas. Acho um absurdo assaltar. Um grande absurdo.

Nesse momento ela enrolou um pouco a língua pra falar mas parece que o assaltante roubou uma camiseta da Igreja Renascer e um rádio antigo sem pilhas.

Mas a maior preocupação atual dela era com os coelhos que estavam aparecendo mortos sem nenhum motivo aparente. Nesta manhã foram três: um siamês e dois pardos.

Olhou a hora e notou que estava se demorando mais que o previsto. Com os olhos cheios d'água agradeceu a minha paciência com um aperto de mão e finalizou:

- Estão envenenando os pobres coelhos. Eu vou parar de comer carne. Agora eu só quero sopa.


* Ilustração: The Last Rabbit. Ryden, M.

15.5.09

Sempre preferiu as flores amarelas.
Enquanto estudava cores descobriu que o amarelo era a cor do ouro. Não almejava ter um império ou mesmo ser rica, apenas acreditava que se gostasse o suficiente daquela cor teria a sorte a caminhar ao seu lado.
Coitada, aos 7 anos e depois de 1 ano da incrível descoberta, sua mãe faleceu.
Já tinha toda a sagacidade de compreender que sua memória se amarelaria no tempo assim como a sua sorte.

Desenhava o perfil da mãe nas paredes, nos cadernos e na lembrança, por medo de perder o que já começava a se tornar embaçado. Imaginava também as brincadeiras que havia aprendido enquanto cabia no melhor colo do mundo.
Quando o pai obrigava-a a dormir, enrolava-se aos lençóis cantando baixinho (enquanto a gotinha de sal brotava daqueles doces olhos de jabuticaba):
Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...

Costumava se pentear frente ao espelho onde - na penteadeira - abria a caixinha de música da bailarina cor de rosa feita de sabão para ouvir repetidamente as cordas daquela melodia eterna.
Quando saía à rua, despia as árvores de seus botões de flor e lançava-os ao ar em oferenda. Não poderia imaginar que sua mãe haveria de lhe psicografar uma carta.

Pré-adolescente, criada pelo pai e irmãos, fez da sua bolha o mundo. Afundava nas águas do seu colchão dando preferência à literatura dos adolescentes aos CDs de rock pauleira que os irmãos forçavam-na a ouvir.

A chegada da menarca preocupou-a e entristeceu-a. Se via forçada a telefonar às poucas colegas para esclarecer as dúvidas que os livros de ciências não esclareciam "Mancha de sangue sai na água?".

O primeiro amor preocupou-a e entristeceu-a. Tinha que ligar às ainda poucas colegas para pedir conselhos que as marie-claires não esclareciam "Como é que posso fugir da minha natureza? Por que devo ir contra o que sinto?". Sentia uma carência afetiva enorme. Havia um espaço não preenchido de carinho, zelo, conselhos e cuidados.

Rotulou-se A fracassada ao término do primeiro namoro e após muita dor de cotovelo criou coragem para ser mais auto-suficiente.
Consciente da sua inteligência, capacidade e afinidade tornou-se jornalista. Lia, relia, assistia filmes e documentários pertinentes, escrevia e redigia pelo menos duas vezes por semana. O pouco tempo livre era dedicado aos doces.
Estava trabalhando numa cooperativa quando uma colega a convidou para conhecer um centro espírita. Já conhecia alguns autores mais modernês como a Zíbia e tinha alguma curiosidade sobre o assunto. Mais profissional que espiritual. Foi lá.

[Por essa hora, a protagonista ainda não identificada esqueceu-se de me caracterizar o ambiente, do qual não tive nenhuma descrição além das paredes azuis anil.
Ao começar a escrever esse texto percebi que haveria muitos furos. Algumas passagens mal contadas ou não contadas... E eu, no meu exagero torto, engrandeci o relato com pitadas pessoais de imaginação e respeito.]

Houve então a surpresa.
Enquanto nossa protagonista dirigia-se a porta de saída após o tour categórico pelo ambiente e a tomada do passe naquele salão a meia-luz, ouviu um grito vindo do interior "Priscilaaaa!".
Ela tornou o pescoço e se deparou com a colega da cooperativa correndo em sua direção, suada, descabelada e desesperada acudindo um papel e gritando sem fôlego "É... uma... carta... da... sua... mãe. Uma... carta! É..."
Priscila tomou-lhe o documento das mãos, sentou-se na calçada da rua um pouco assustada e leu por cerca de duas horas consecutivas a seguinte mensagem "Recebi todas as flores que você me ofereceu!".
Não conseguia absorver o quão era possível estar lendo aquela mensagem. Durante toda sua vida nunca tinha confessado nem em sonho o costume de atirar flores ao ar enquanto oferecia-as à mãe.
Chorando emocionada descobriu, então, que nunca estivera sozinha e como um estalo de chofre descobriu que em cada grande decisão e momento da sua vida não existia apenas um coração a mostrar-lhe o caminho, mas sim dois. E dos grandes.

7.5.09

Dessa vez fui abordada por um sorriso de 3 dentes que recitava contente versos avulsos do nordestino rei do baião Luiz Gonzaga com uma alegria um tanto tonta decorrente de um forte sol matinal.

"Bom dia! Good morning! Bonjour! Buongiorno! Buenos días! Goedemorgen! おはよう!"

Só me lembro do seu primeiro nome: Ítalo.

Entre rimas e prosas foi invadindo meu ambiente de trabalho como quem nada busca além de atenção e um pouco de conversa fiada. "Enquanto o sol não baixar ficarei contigo a conversar. Saiba que não bebo, não fumo e não jogo, mas de mulheres eu gosto muito."

Falar 75 anos em uma hora o fez por alguns momentos abrir o chuveiro que havia dentro dos seus olhos. Chorava porque sentia dor, porque gargalhava, porque sentia medo ou porque sentia saudades.
Semianalfabeto, casou-se contra a vontade de seu pai com uma bailarina russa de um farelo de circo. "Ela era o ar que eu respirava, apesar de ter sido a mulher com o gênio mais pavoroso que já encontrei na vida."

Antes de ser pai biológico de uma menina, Seu Ítalo tomou para criar um dos palhaços mirins do circo desafortunado que se desfazia e deixava apenas fotografias amareladas e espaçadas lembranças. O garoto registrado, Lion, fugiu em busca de outro circo quando completou 15 anos. Até hoje é lembrado como o mal agradecido petulante.
Seu Ítalo deixou sua bailarina de gênio pavoroso grávida e viajou pelo mundo atrás de Lion. Frustrou-se. Regressou. Por não ter dinheiro para viajar de avião resolveu tomar um navio, a viagem foi tão longa que só conseguiu chegar em casa no 7º aniversário da sua filha Ana.

Enquanto recordava seu passado o vi segurando Zorba, o Grego¹ e perguntei qual seria o destino do livro. "Já devorei-o e agora vou cuspí-lo. Já me bastei de loucuras e responsabilidades compartilhadas", ouvi.

Eu olhava pra aquele senhor estranho e falante na minha frente e me lembrava amargamente do fato de eu nunca ter tido o privilégio de ter conhecido meus avós. Seu Ítalo vestia uma roupa branca nuvem e calçava sapatos desses que os médicos calçam.
- O senhor é médico?
- Não, não. Sou médium, médico não.

Sorri atenta ao que por mais alguns minutos seria a continuação do seu passado.
Aos 20 anos pensou na medicina como uma extensão das atividades que já exercia: costurava galinhas, cavalos e pombos. "Muitos morreram nas minhas mãos, mas depois de muitas tentativas consegui aprender sozinho a salvar vidas!"
No verão costumava ir caçar coelho com seu pai que acabou, por distração, atingindo o rabo do cachorro da família. Naquela hora Seu Ítalo percebeu que não conseguiria costurá-lo e a única coisa que conseguiu criar foi a rima da consolação para que o cachorro pudesse recitar quando lhe devolvessem sua canina voz:

Dr. Teotônio, que descuido, no meu rabo atirou
Ave Maria, misericórdia, veja só como ficou
Meus amigos vão zombar, vão dizer que é esquisito
Pois meu rabinho, coitadinho, agora é tábua de pirulito

Foi logo depois da tragédia bucólica que descobriu sua mediunidade. Tinha o costume de pegar a canoa e ir pro mangue caçar. Certa vez engatilhou seu rifle calibre 22, mas por uma oxidação precoce a arma sem querer disparou contra seu próprio queixo. Sentiu a segunda maior dor da sua vida e enquanto se apalpava buscando estancar uma possível hemorragia reparou o projétil intacto no fundo da canoa. O espelho d'água lhe refletia inteiro. "Milagre! Milagre!" Quando um índio lhe apareceu em pensamento e disse ser o Pai dos Mangues e que pra muitos acontecimentos da vida havia pouca ou nenhuma explicação.

Na década de 60, morando em São Paulo, foi internado num hospital por não ser mais compreendido socialmente. "Desumano!" e sentiu a primeira maior dor da sua vida. "Não recomendo choque elétrico para ninguém, nem para os doidos." Sua mãe já falecida lhe apareceu em carne e osso no momento em que seus músculos se contraíam de dor e lhe disse que aquela seria a última vez em que ele estaria num hospital. Seu Ítalo nunca mais adoeceu na vida.

Já se aproximava do horário de almoço quando confessou que havia ido ao meu encontro por indicação do guarda florestal. Queria ver os animais e as plantas, mas acabou se demorando entusiásticamente que todo o resto deixou de ter importância. Por fim disse "Até amanhã, afinal, essa ginástica é indispensável na minha idade."





¹: "Quem teria criado esse labirinto de incertezas, esse templo da presunção, essa jarra de pecados, esse campo semeado de mil ardis, essa porta do inferno, essa cesta transbordante de astúcias, esse veneno que parece mel, essa corrente que prende os mortais à terra: a mulher?" Trecho de Zorba, o Grande - Nikos Kazantzakis.