verdade viva °°°: outubro 2006

24.10.06

...

O pedaço de papel cheirava a vapor de caldeirão de magia negra, e ao abrir Nélia aborreceu-se tremendamente com a brincadeira de tão mau gosto: "Teu mundo cairá" escrito em letras fúnebres deixou o ar do camarim sufocante e exulcerativo. Passaram-se alguns minutos depois do choque da mensagem para que Nélia risse de si mesma e do quanto boba fora para deixar-se impressionar por um fedorento e amassado pedaço de papel. "Invejosos" pensou consigo, e continuou a retirar a maquiagem com uma pasta removedora que cheirava a morangos frescos.

Acumulara tantos ouros até então que juntamente com a riqueza que a família já possuía construiram um lindo castelo bordeado de ouro que brilhava como o sol até quando o crepúsculo da noite assombrava a madrugada fria.

Nélia passou a se vangloriar com sua popularidade que cometeu inconsequentemente o pecado de nem mais cumprimentar os velhos amigos, nem mesmo os fãs, efetivos adoradores que iam assistí-la representar as incontáveis peças teatrais, onde sempre era ela a protagonista.

Quanto mais sua fortuna crescia, paralelamente traçava-se progressivamente a linha da solidão, que embutia à Nélia momentos de bebedeiras em seu quarto, que ocupava todo o andar superior do castelo.

Ao representar olhava de cima do palco famílias reunidas, casais de namorados apaixonados com alianças de noivados e tentava não demonstrar sua inquietude e incômodo. Sempre queria estar sozinha contando suas estrelas e quanto mais os anos passavam-se menos certeza ela tinha dessa decisão formada em sua juventude.

No seu castelo dourado já eram seis os quartos dos sapatos. Já não bastava os presentes dos seus fãs, Nélia fazia questão de gastar muito dinheiro comprando seus preciosos nas lojas mais caras e importadas. Às vezes submetia seus adoradores à viagens longínquas para que lhe trouxessem as novas modas que demoraria anos para estourar em Calos Duros e exibia-se pelas ruas e praças do lugar. E em troca do sacrifício dos seus galantes e apaixonados dava-lhes como pagamento um beijo num pedaço de papel marcado com batom. Não era capaz de dar um vintém em troca de favores. E os rapazes bobos e iludidos, cegos de amor, disputavam entre si qual a marca de batom tinha traços mais fortes e mais vivos, que seriam sinônimos de simpatia e afeto da estrela Nélia.

(continua)

A Nélia sempre vivera na pacata região de Calos Duros, no oeste de Catamarã, divisa com a região da Ponta do Colosso. A comunidade era hostil e de poucas palavras e Nélia construíra com as outras crianças uma infância tecida por brincadeiras de meninos e namoricos bissexuais aos fundos dos quintais.

Nélia era uma garota prodígia, contava estrelas e batizava cada uma delas todas as noites logo após a última sesta.
Quando adolescente tinha uma libido que ofuscava e confundia os rapazes do lugarejo, encantados pelas suas descomunais performances ao dançar e cantar para eles. Mas ela não se dava conta dos estragos que fazia com inúmeros corações apaixonados, e no teatro não só os atores que contracenavam com ela apaixonavam-se, mas a platéia toda, homens e mulheres de todas as idades encantavam-se ao vê-la interpretar.

Mulher formosa, estatura mediana, olhos castanhos claros e cílios sempre reforçados com rímel. Cabelos ondulados e fúlvidos que cheiravam almíscar, caídos até a cintura e sempre enfeitados com laços de fitas coloridas. Filha de pais ricos e esbanjadores de luxo, teve aulas de etiqueta e comportamento durante anos e era invejada por todas as saias de Calos Duros e arredores que sabiam da sua existência. Ao contrário do espivitismo de seus pais, era calma e serena, educadíssima e não falava palavrões. Quando espetava o dedo em algum espinho ou tropeçava no pé da cama sempre se policiava e se sentia mal quando involuntariamente pensava em gritar imundícies aos quatro ventos.

O sucesso no palco do teatro Calodurensse transformara-a em estrela e era estranho ela nunca ter se apaixonado ou ao menos se interessado por nenhum rapaz até então. Recebia caixas e caixotes empanturrados de declarações, cartas e rosas vermelhas, pedidos de casamento, jóias caras e sapatos irresistíveis. Adorava os sapatos e o restante guardava com carinho para mostrar aos filhos se houvesse de tê-los um dia.
Os sapatos serviam para as suas diferentes personagens, cujos pés trinta e quatro chamavam mais atenção que o busto esplêndido e fumegante.

Certa vez, ao final de mais um espetáculo foi ajeitar-se no camarim para regressar à mansão dos Catarinos quando por debaixo da porta um bilhete lhe foi remetido...

(continua)