verdade viva °°°: junho 2009

28.6.09

"Vendi o apartamento e lembrei de você. Resolvi te ligar porque o colchão que estava lá na sala desde a última vez em que estivemos juntos ainda está lá, coberto de poeira."


6 anos antes:

Estava atenta à maresia do cenário e às frutas tropicais, que dispostas sobre a mesa redonda de madeira aguçavam o meu desejo constante. O sussurro carinhoso do vento fazia os meus cabelos dançarem divertidos, ao mesmo tempo em que o sussurro carinhoso da tua voz divertia os meus ouvidos e o meu tato.

O vinho daquela noite de novembro de repente tornou o tempo quente e propício para um mergulho noturno no raso do mar.

Descemos as escadas apressados apostando quem ganharia a primeira gota salgada do verão e, que engraçado, ganhamos juntos.
O azul das minhas veias rabiscava a minha pele branca que, satisfatoriamente, debruçava-se sobre a tua cor assaz morena, forte, expressiva.

Pareceu-me que, propositadamente haviam jogado mais estrelas naquele céu e mais sorrisos em nós dois.

As mãos entrelaçadas expulsavam o arrepio causado pelo vento frio e corremos de volta ao nosso ninho aquecido.

O espetáculo dos primeiros raios de sol foi assistido no colchão que, estrategicamente, fora posicionado frente à varanda, na sala.
Éramos nós dois e o céu de novembro.
E eu ainda consigo ouvir, nas minhas palavras escritas, o nosso som.







"...taller than the tallest tree is
thats how its got to feel
deeper than the deep blue sea is
thats how deep it goes if its real..."

Trecho: All the way. Sinatra.

21.6.09

O barulho dentro de casa era pouco, quase nada. Meus pais espreguiçavam-se à mesa para o início do desjejum. Com felicidade e otimismo acordei cedo. Felicidade derivada de uma foto-mensagem do meu Teteco soltando pipa. Otimismo derivado da esperança de tirar uma nota razoável na prova de Embriologia amanhã.

E é sobre o Teteco que eu resolvi escrever no blog, depois de matutar durante dois dias e meio se eu deveria continuar ou não a escrever experiências pessoais com os ilustres dos meus dias.

O Teteco vai completar 7 mês que vem. O Teteco é o meu sobrinho e responsável pelos diálogos mais bonitos do mundo. Numa atitude descontrolada de maus e profundos sentimentos, em fevereiro deste ano, lançou na tv de 42 polegadas da sua casa um controle de playstation II rachando a tela plana de ponta a ponta.
Castigo: sem vídeo game até o dia do aniversário.
Milhões de pedidos de desculpas diários e manifestos de arrependimento não dobraram o coração dos responsáveis pela sua educação, porém idéias geniais surgiram na caixola dos genitores, como por exemplo, colocar a criança para exercitar o corpo: karatê.

Por esses dias eu o pegava na varanda da minha casa entre kihons, katas e kumites. Estava treinando para o teste de mudança de faixa.
No ginásio da escola mais de cem crianças em fila esperavam seus nomes serem chamados para mostrar ao público o que haviam aprendido durante o semestre. Matheus foi o último a lutar da sua classe e o único a ganhar a faixa amarela. Estava tão contente, mas tão contente que o visualizei iluminado com um sorriso de lua minguante e olhos de estrela em sua face. Queria ter estado lá, de frente. Não apenas ter ouvido ele me contar, mas a minha pneumonia tem me impedido de muitas coisas. Ontem ele me convidou pra ir ao cinema "Eu pago, tia Nessa!" e um nozinho no meu peito se criou.

A foto-mensagem que recebi dele no meu celular mostrava-o soltando pipa num terreno em frente ao prédio em que mora. Ficar sem vídeo-game faz dele uma criança livre, falante e diferente dos amigos. E faz do meu irmão um pai mais presente e preocupado com as atividades de lazer.
Eu fiquei muito feliz quando soube da idéia de ensiná-lo a soltar pipa. Acho que toda criança tem que passar por isso enquanto ainda existe espaço vazio e horizontal na cidade.
Imagino como deve ter ficado meu irmão, relembrando sua infância em Belém nas disputas de pipa com os amigos e imagino como deve ter ficado minha mãe, imaginando o uso do cerol e os acidentes provocados. Soltar pipa sozinho inutiliza o cerol, me imaginei despreocupando-a. Hoje em dia é difícil perceber o céu colorido de pipas com suas rabiolas e o chão colorido de meninos correndo descalços domando emocionados os brinquedos de papel.

Matheus e sua pipa


Espero que quando o Teteco voltar a jogar vídeo-game ele não veja tanta graça e continue a me chamar para ir ao cinema, ou ir mergulhar no mar com os equipamentos de profissional mirim que ele tem e gosta de exibir. Ou que continue a me convidar para levá-lo ao circo e tê-lo dormindo em meu colo meio ao espetáculo. Ou continue a me chamar para jogar quebra-cabeça ou ping-pong na varanda. E continue soltando pipa e quebrando os carrinhos Hot Wheels.

Espero que o meu Teteco esteja tendo uma infância feliz, como eu tive. Como o pai dele teve. E como deve ser. Eu só queria registrar de alguma forma o meu orgulho.
Não sei porquê, mas hoje eu acordei com tanta vontade de ser tia. Que droga de pneumonia.

17.6.09

Me falta

o ar
o sal nos olhos
o doce no sangue
a moleza no pulso

o calor do tato
a reticente vontade
o carinho necessário
o abrigo contra chuva

a ré da marcha
o querer teimoso
a paisagem da foto
o artigo oposto

o abrir da porta
a lâmpada acesa
a diversão do segundo
a solução do perdido
a perdição soluta

a conjunção aditiva
a adição do conjunto
a atenta minúcia
o minuto do tempo

Me sobra nada.

11.6.09

Era cedo e os girassóis espreguiçavam-se com os primeiros raios de sol.
Os cães corriam soltos pelo jardim assustando os transeuntes apressados que involuntariamente encostavam-se nas grades do portão.

João descobriu-se dos lençóis, desabotoou os pijamas e urinou ao pé da cama. João não sabia mais onde estava.
Foi flagrado pela filha mais nova:
- Papai, por que o senhor não foi ao banheiro?
- Quem é você? Não olhe para mim sua puta.

João aprendeu palavrões aos 16 anos quando saiu escondido da mãe pela primeira vez e foi ao cabaré jogar baralho com os amigos mais velhos. João levou uma grande surra ao repetir as palavras da rua em casa.

Acreditam que João fala palavrões atualmente para descontar o desconforto da repressão que sofreu durante a ditadura militar.

João tem 80 e está doente. Os últimos implacáveis cinco anos de desmemória gradual levaram-no ao estado de hoje: não sobrou nada.
Foram esquecidos 60 anos de vida. Foram deixados para trás aniversários, casamentos, velórios, profissão, viagens, filhos, família.
João oscila entre os seus ultrapassados 5 e 20 anos de idade.
A década é outra e a cada momento ele pode desaprender a falar, a andar, a comer.
A cada momento ele pode reaprender tudo isso e ir procurar o uniforme da escola.
Ele pode deixar de sentir dor, de rir, de chorar e de querer. Pode se machucar e correr chorando buscando o colo da mãe. Mãe?
João tem 80.

Seria engraçado ouvir que alguém entrou no banheiro, lambuzou-se de bosta da cabeça aos pés e saiu à sala para cumprimentar a família.
Seria engraçado ouvir que alguém chegou num velório e gritou "Levante daí seu filho da puta, pare de fingir que está dormindo!".
Seria engraçado ouvir que alguém foi ao culto e gritou "Vamos embora deste cabaré. Só tem puta desalmada e veados!"
Seria engraçado ouvir que alguém se levantou ao amanhecer e fez xixi ao pé da cama.

Selton Mello num papel desses ganharia um prêmio.

Ninguém mais tem a mínima noção de como agir. Ninguém mais tão paciente faz nada além de esperar. João ganhou um colchão novo porque o velho estava velho demais.
A doença de Alzheimer é degenerativa, é incurável.

7.6.09

As bicicletas com seus velocímetros imaginários iam sendo guiadas pelos meninos daquela Natal de ruas retorcidas e estreitas a 60km por hora. Eles disputavam corrida todo domingo, no final da tarde, usando suas melhores roupas e calçando os melhores sapatos. Sorriam, corriam, iam em direção à casa do Sr. Trajano, o presidente do sindicato dos eletricistas da cidade.

Na década de 70 o Sr. Trajano foi o primeiro a ter TV em cores no bairro do Alecrim. Ele abria as portas da sua casa aos domingos para que todos pudessem compartilhar os dramas das telenovelas e principalmente a emoção dos jogos de futebol com seus replays e slow motions (o máximo de tecnologia para a época).

Os meninos pouco se interessavam pela TV do Sr. Trajano. Quando iam ao seu encontro não esperavam desenhos animados, atos heróicos de mocinhos ou beijos de amor - quanta indecência! Os meninos sentavam-se ao redor daquele senhor cordial, de cabelos brancos, espírito jovem e perdiam-se naquele olhar molhado, quase fúnebre de um azul anil saudoso.

Era sempre a mesma coisa. Os meninos nunca se cansavam e o Sr. Trajano sempre contava paciente e com os mínimos detalhes as aventuras do Capitão Mandioca e as estrelas-do-mar. Nenhuma televisão era mais interessante e mais mágica que isto.

"Era uma vez um menino chamado Mandioca. Tinha esse nome porque sua mãe, descendente de índios, aprendera a cultivar o tal alimento retirando o respectivo cianeto para o fabrico da farinha. Aos 14 anos, Mandioca conseguiu entrar para a brigada da Marinha Brasileira sem nunca ter visto o mar. Ao conhecer aquela imensidão de uma valentia azul pensou que teria seu corpo engolido naquele mesmo momento e orou com os olhos fechados e apertados ao seu bom Deus pedindo a proteção contra o monstro chamado oceano. Ainda ali, tropeçou de repente num objeto estranho enterrado sob a areia. “Oh! Uma estrela!” Olhou para o céu e percebeu que aquele monstro era nada mais, nada menos que o céu ao contrário. A partir de então, resolveu desbravar, impetuoso, o céu. Tornou-se o maior e melhor Capitão já visto na história da vida. Venceu guerras e levou remédios e alimentos aos necessitados ribeirinhos. Deu pitaco nas construções dos portos de todo o país bem como na vida dos que não viviam no e para o mar. Sua maior dor em vida foi arquitetar, pensando em seus marinheiros, as medalhinhas de honra ao mérito em formato de estrela. Infelizmente as centenas da sua produção só lograram êxito no peito dos xerifes e delegados das cidades por onde seu navio militar aportou. O Capitão Mandioca construiu uma vida digna e louvável, porém faleceu do veneno que era o seu próprio nome cozido.”

Os meninos ouviam uma, duas, três vezes a mesma história do Capitão Mandioca. Ficavam curiosos imaginando se o oceano era mesmo o céu ao contrário ou se aquelas estrelas do mar não tinham asas e voavam até o céu, feito anjos, enganando os bobos que se surpreendiam ao encontrar algumas delas enterradas na areia da praia.

Os meninos sentiam orgulho do Capitão Mandioca e de toda sua glória. Faziam-se marinheiros de faz-de-conta e desenhavam estrelas em seus peitos para que assim, o esqueleto do Capitão, onde estivesse enterrado, batesse palmas de felicidade pelos pequenos futuros homenzinhos do mar que acreditavam naquele plano das medalhinhas como uma singela homenagem, e ficavam curiosos e ansiosos pelo momento incerto de conhecer o mar.

Bem naquela hora, enquanto os meninos devaneavam contentes sobre as aventuras do Capitão Mandioca e os convidados para o espetáculo televisivo distraíam-se com o figurino da atriz, o Sr. Trajano, satisfeito, foi silencioso ao quarto abrir a sua gaveta de estrelinhas de honra ao mérito bem no momento em que seus olhos azuis anil se fechavam lentamente.