verdade viva °°°

11.6.09

Era cedo e os girassóis espreguiçavam-se com os primeiros raios de sol.
Os cães corriam soltos pelo jardim assustando os transeuntes apressados que involuntariamente encostavam-se nas grades do portão.

João descobriu-se dos lençóis, desabotoou os pijamas e urinou ao pé da cama. João não sabia mais onde estava.
Foi flagrado pela filha mais nova:
- Papai, por que o senhor não foi ao banheiro?
- Quem é você? Não olhe para mim sua puta.

João aprendeu palavrões aos 16 anos quando saiu escondido da mãe pela primeira vez e foi ao cabaré jogar baralho com os amigos mais velhos. João levou uma grande surra ao repetir as palavras da rua em casa.

Acreditam que João fala palavrões atualmente para descontar o desconforto da repressão que sofreu durante a ditadura militar.

João tem 80 e está doente. Os últimos implacáveis cinco anos de desmemória gradual levaram-no ao estado de hoje: não sobrou nada.
Foram esquecidos 60 anos de vida. Foram deixados para trás aniversários, casamentos, velórios, profissão, viagens, filhos, família.
João oscila entre os seus ultrapassados 5 e 20 anos de idade.
A década é outra e a cada momento ele pode desaprender a falar, a andar, a comer.
A cada momento ele pode reaprender tudo isso e ir procurar o uniforme da escola.
Ele pode deixar de sentir dor, de rir, de chorar e de querer. Pode se machucar e correr chorando buscando o colo da mãe. Mãe?
João tem 80.

Seria engraçado ouvir que alguém entrou no banheiro, lambuzou-se de bosta da cabeça aos pés e saiu à sala para cumprimentar a família.
Seria engraçado ouvir que alguém chegou num velório e gritou "Levante daí seu filho da puta, pare de fingir que está dormindo!".
Seria engraçado ouvir que alguém foi ao culto e gritou "Vamos embora deste cabaré. Só tem puta desalmada e veados!"
Seria engraçado ouvir que alguém se levantou ao amanhecer e fez xixi ao pé da cama.

Selton Mello num papel desses ganharia um prêmio.

Ninguém mais tem a mínima noção de como agir. Ninguém mais tão paciente faz nada além de esperar. João ganhou um colchão novo porque o velho estava velho demais.
A doença de Alzheimer é degenerativa, é incurável.

6 Comments:

At 11.6.09, Blogger dea said...

tudo o que você escreveu se parece muito com o que aconteceu/acontece aqui em casa com o meu avô. alzheimer é uma doença que nos primeiros anos deixa todos em uma família degenerados também.

parabéns pelos escritos!

 
At 11.6.09, Anonymous Bruno Costa said...

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

MANUEL BANDEIRA

Será que é melhor esperar o fim do espetáculo ou beber, cantar, dançar e se atirar na lagoa Rodrigo de Freitas?

 
At 11.6.09, Anonymous Filipe Moreno said...

Tenho que contar uma histórinha também:

Seu Alexandre, apesar do nome de imperador, não era da falar muito. Pelo menos não desde que o conheci. Como que pra provar o fato de que ser um homem de ação, não de palavras, sem muito alarde fez 16 filhos.6 morreram, 10 se criaram.

Sua vida foi uma uma epopéia. Aos 15 anos, saiu de seu sertão, sertão sertão mesmo, da caatinga e da casa de taipa, e foi A PÉ, acompanhando a linha do trem, até o litoral. Uma viagem que hoje em dia somaria umas 6 horas de carro.

Chegando à capital, sem nenhuma formação ou ajuda, construiu uma família. Pode parecer pouco, mas há de se contar que eram 12 em sua casa, e graças a ele e sua mulher, nenhum passou necessidade. Talvez apenas o próprio, mas se isso aconteceu, ele mesmo nunca contou pra ninguém.

Os filhos, talvez por herdarem algo de sua força, foram se formando, e saindo de casa: Arquitetos, Cientistas, engenheiros... Quando eu o conheci, ele reinava soberano na casa onde ainda estavam sua mulher e algumas filhas mais novas. E já não era de falar muito.

Depois que todos os filhos se fizeram na vida (sim, por que TODOS se fizeram, apesar do pai lavrador, ou talvez por isso mesmo.) Ele não deu seu trabalho por terminado. Voltou pra sua terra e a reconstruiu. Fez quadra de esportes, igreja, escola...tudo custeado do próprio bolso. E foi por essa época que, apesar de não ser militar, ganhou do povo de lá o apelido de "coronel", com o qual se divertia. O povo de seu lugar recorria mais a ele que ao próprio prefeito. E sua família não tinha mais nome: sua mulher era "a mulher de seu Alexandre", e o mesmo para com seus filhos e netos.

Como eu disse, é uma epopéia, e é impossivel resumi-la sem ser injusto. Casos teve, mas mulher mesmo foi uma só a vida toda. 65 anos de casado. Aos 70 e poucos, seu Alexandre voltou pra capital, por motivos de saúde, e para administrar a familia mais de perto. Aos oitenta e poucos, foi diagnosticado com Alzhaimer.

Seu Alexandre, que não era de falar muito, agora brinca, faz piada, e xixi na cama. Seu Alexandre, o coronel, cuja a palavra (rara) era sempre a última em todos os casos, precisa agora de alguém para lhe trocar.

Seu Alexandre é meu avô. Foi também a figura paterna mais importante de minha infância, e é pra mim, para todos nós da família, e pra todos que o conheceram, um... um não, "O" exemplo de grande homem. Apesar de baixinho.

Acho que já dá pra sentir o quanto o texto me tocou.

:*

 
At 12.6.09, Blogger Yuri Andrews said...

Essa é a típica doença que nos mostra que, no fim de tudo, a gente vai voltar exatamente pra o lugar de onde veio: pro babador e pras fraldas.


E eu não sabia do seu conhecimento de causa, tartaruga.


Foi impecável. Mesmo.

(L)



;*

 
At 12.6.09, Blogger Unknown said...

Noh.. Muito boa.. Tanto a sua quanto essa daqui de cima. Não consigo ler e não reler suas histórias. Estou na espera do dia em que você resolver escrever um livro =)

 
At 16.6.09, Blogger Isabela Bentes said...

ai, que dor ouvir isso. =~~

 

Postar um comentário

<< Home