As bicicletas com seus velocímetros imaginários iam sendo guiadas pelos meninos daquela Natal de ruas retorcidas e estreitas a 60km por hora. Eles disputavam corrida todo domingo, no final da tarde, usando suas melhores roupas e calçando os melhores sapatos. Sorriam, corriam, iam em direção à casa do Sr. Trajano, o presidente do sindicato dos eletricistas da cidade.
Na década de 70 o Sr. Trajano foi o primeiro a ter TV em cores no bairro do Alecrim. Ele abria as portas da sua casa aos domingos para que todos pudessem compartilhar os dramas das telenovelas e principalmente a emoção dos jogos de futebol com seus replays e slow motions (o máximo de tecnologia para a época).
Os meninos pouco se interessavam pela TV do Sr. Trajano. Quando iam ao seu encontro não esperavam desenhos animados, atos heróicos de mocinhos ou beijos de amor - quanta indecência! Os meninos sentavam-se ao redor daquele senhor cordial, de cabelos brancos, espírito jovem e perdiam-se naquele olhar molhado, quase fúnebre de um azul anil saudoso.
Era sempre a mesma coisa. Os meninos nunca se cansavam e o Sr. Trajano sempre contava paciente e com os mínimos detalhes as aventuras do Capitão Mandioca e as estrelas-do-mar. Nenhuma televisão era mais interessante e mais mágica que isto.
"Era uma vez um menino chamado Mandioca. Tinha esse nome porque sua mãe, descendente de índios, aprendera a cultivar o tal alimento retirando o respectivo cianeto para o fabrico da farinha. Aos 14 anos, Mandioca conseguiu entrar para a brigada da Marinha Brasileira sem nunca ter visto o mar. Ao conhecer aquela imensidão de uma valentia azul pensou que teria seu corpo engolido naquele mesmo momento e orou com os olhos fechados e apertados ao seu bom Deus pedindo a proteção contra o monstro chamado oceano. Ainda ali, tropeçou de repente num objeto estranho enterrado sob a areia. “Oh! Uma estrela!” Olhou para o céu e percebeu que aquele monstro era nada mais, nada menos que o céu ao contrário. A partir de então, resolveu desbravar, impetuoso, o céu. Tornou-se o maior e melhor Capitão já visto na história da vida. Venceu guerras e levou remédios e alimentos aos necessitados ribeirinhos. Deu pitaco nas construções dos portos de todo o país bem como na vida dos que não viviam no e para o mar. Sua maior dor em vida foi arquitetar, pensando em seus marinheiros, as medalhinhas de honra ao mérito em formato de estrela. Infelizmente as centenas da sua produção só lograram êxito no peito dos xerifes e delegados das cidades por onde seu navio militar aportou. O Capitão Mandioca construiu uma vida digna e louvável, porém faleceu do veneno que era o seu próprio nome cozido.”
Os meninos ouviam uma, duas, três vezes a mesma história do Capitão Mandioca. Ficavam curiosos imaginando se o oceano era mesmo o céu ao contrário ou se aquelas estrelas do mar não tinham asas e voavam até o céu, feito anjos, enganando os bobos que se surpreendiam ao encontrar algumas delas enterradas na areia da praia.
Os meninos sentiam orgulho do Capitão Mandioca e de toda sua glória. Faziam-se marinheiros de faz-de-conta e desenhavam estrelas em seus peitos para que assim, o esqueleto do Capitão, onde estivesse enterrado, batesse palmas de felicidade pelos pequenos futuros homenzinhos do mar que acreditavam naquele plano das medalhinhas como uma singela homenagem, e ficavam curiosos e ansiosos pelo momento incerto de conhecer o mar.
Bem naquela hora, enquanto os meninos devaneavam contentes sobre as aventuras do Capitão Mandioca e os convidados para o espetáculo televisivo distraíam-se com o figurino da atriz, o Sr. Trajano, satisfeito, foi silencioso ao quarto abrir a sua gaveta de estrelinhas de honra ao mérito bem no momento em que seus olhos azuis anil se fechavam lentamente.
3 Comments:
Adoro tomar cerveja... mas vir aqui é como tomar uma dose daquela tradicional cachaça mineira... poucos hábitos são tão agradáveis...
Adorei essa!
x)
Adoraria ter sido um desses menininhos ouvindo a história do Sr. Trajano!
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