Dessa vez fui abordada por um sorriso de 3 dentes que recitava contente versos avulsos do nordestino rei do baião Luiz Gonzaga com uma alegria um tanto tonta decorrente de um forte sol matinal.
"Bom dia! Good morning! Bonjour! Buongiorno! Buenos días! Goedemorgen! おはよう!"
Só me lembro do seu primeiro nome: Ítalo.
Entre rimas e prosas foi invadindo meu ambiente de trabalho como quem nada busca além de atenção e um pouco de conversa fiada. "Enquanto o sol não baixar ficarei contigo a conversar. Saiba que não bebo, não fumo e não jogo, mas de mulheres eu gosto muito."
Falar 75 anos em uma hora o fez por alguns momentos abrir o chuveiro que havia dentro dos seus olhos. Chorava porque sentia dor, porque gargalhava, porque sentia medo ou porque sentia saudades.
Semianalfabeto, casou-se contra a vontade de seu pai com uma bailarina russa de um farelo de circo. "Ela era o ar que eu respirava, apesar de ter sido a mulher com o gênio mais pavoroso que já encontrei na vida."
Antes de ser pai biológico de uma menina, Seu Ítalo tomou para criar um dos palhaços mirins do circo desafortunado que se desfazia e deixava apenas fotografias amareladas e espaçadas lembranças. O garoto registrado, Lion, fugiu em busca de outro circo quando completou 15 anos. Até hoje é lembrado como o mal agradecido petulante.
Seu Ítalo deixou sua bailarina de gênio pavoroso grávida e viajou pelo mundo atrás de Lion. Frustrou-se. Regressou. Por não ter dinheiro para viajar de avião resolveu tomar um navio, a viagem foi tão longa que só conseguiu chegar em casa no 7º aniversário da sua filha Ana.
Enquanto recordava seu passado o vi segurando Zorba, o Grego¹ e perguntei qual seria o destino do livro. "Já devorei-o e agora vou cuspí-lo. Já me bastei de loucuras e responsabilidades compartilhadas", ouvi.
Eu olhava pra aquele senhor estranho e falante na minha frente e me lembrava amargamente do fato de eu nunca ter tido o privilégio de ter conhecido meus avós. Seu Ítalo vestia uma roupa branca nuvem e calçava sapatos desses que os médicos calçam.
- O senhor é médico?
- Não, não. Sou médium, médico não.
Sorri atenta ao que por mais alguns minutos seria a continuação do seu passado.
Aos 20 anos pensou na medicina como uma extensão das atividades que já exercia: costurava galinhas, cavalos e pombos. "Muitos morreram nas minhas mãos, mas depois de muitas tentativas consegui aprender sozinho a salvar vidas!"
No verão costumava ir caçar coelho com seu pai que acabou, por distração, atingindo o rabo do cachorro da família. Naquela hora Seu Ítalo percebeu que não conseguiria costurá-lo e a única coisa que conseguiu criar foi a rima da consolação para que o cachorro pudesse recitar quando lhe devolvessem sua canina voz:
Foi logo depois da tragédia bucólica que descobriu sua mediunidade. Tinha o costume de pegar a canoa e ir pro mangue caçar. Certa vez engatilhou seu rifle calibre 22, mas por uma oxidação precoce a arma sem querer disparou contra seu próprio queixo. Sentiu a segunda maior dor da sua vida e enquanto se apalpava buscando estancar uma possível hemorragia reparou o projétil intacto no fundo da canoa. O espelho d'água lhe refletia inteiro. "Milagre! Milagre!" Quando um índio lhe apareceu em pensamento e disse ser o Pai dos Mangues e que pra muitos acontecimentos da vida havia pouca ou nenhuma explicação.
Na década de 60, morando em São Paulo, foi internado num hospital por não ser mais compreendido socialmente. "Desumano!" e sentiu a primeira maior dor da sua vida. "Não recomendo choque elétrico para ninguém, nem para os doidos." Sua mãe já falecida lhe apareceu em carne e osso no momento em que seus músculos se contraíam de dor e lhe disse que aquela seria a última vez em que ele estaria num hospital. Seu Ítalo nunca mais adoeceu na vida.
Já se aproximava do horário de almoço quando confessou que havia ido ao meu encontro por indicação do guarda florestal. Queria ver os animais e as plantas, mas acabou se demorando entusiásticamente que todo o resto deixou de ter importância. Por fim disse "Até amanhã, afinal, essa ginástica é indispensável na minha idade."
¹: "Quem teria criado esse labirinto de incertezas, esse templo da presunção, essa jarra de pecados, esse campo semeado de mil ardis, essa porta do inferno, essa cesta transbordante de astúcias, esse veneno que parece mel, essa corrente que prende os mortais à terra: a mulher?" Trecho de Zorba, o Grande - Nikos Kazantzakis.
"Bom dia! Good morning! Bonjour! Buongiorno! Buenos días! Goedemorgen! おはよう!"
Só me lembro do seu primeiro nome: Ítalo.
Entre rimas e prosas foi invadindo meu ambiente de trabalho como quem nada busca além de atenção e um pouco de conversa fiada. "Enquanto o sol não baixar ficarei contigo a conversar. Saiba que não bebo, não fumo e não jogo, mas de mulheres eu gosto muito."
Falar 75 anos em uma hora o fez por alguns momentos abrir o chuveiro que havia dentro dos seus olhos. Chorava porque sentia dor, porque gargalhava, porque sentia medo ou porque sentia saudades.
Semianalfabeto, casou-se contra a vontade de seu pai com uma bailarina russa de um farelo de circo. "Ela era o ar que eu respirava, apesar de ter sido a mulher com o gênio mais pavoroso que já encontrei na vida."
Antes de ser pai biológico de uma menina, Seu Ítalo tomou para criar um dos palhaços mirins do circo desafortunado que se desfazia e deixava apenas fotografias amareladas e espaçadas lembranças. O garoto registrado, Lion, fugiu em busca de outro circo quando completou 15 anos. Até hoje é lembrado como o mal agradecido petulante.
Seu Ítalo deixou sua bailarina de gênio pavoroso grávida e viajou pelo mundo atrás de Lion. Frustrou-se. Regressou. Por não ter dinheiro para viajar de avião resolveu tomar um navio, a viagem foi tão longa que só conseguiu chegar em casa no 7º aniversário da sua filha Ana.
Enquanto recordava seu passado o vi segurando Zorba, o Grego¹ e perguntei qual seria o destino do livro. "Já devorei-o e agora vou cuspí-lo. Já me bastei de loucuras e responsabilidades compartilhadas", ouvi.
Eu olhava pra aquele senhor estranho e falante na minha frente e me lembrava amargamente do fato de eu nunca ter tido o privilégio de ter conhecido meus avós. Seu Ítalo vestia uma roupa branca nuvem e calçava sapatos desses que os médicos calçam.
- O senhor é médico?
- Não, não. Sou médium, médico não.
Sorri atenta ao que por mais alguns minutos seria a continuação do seu passado.
Aos 20 anos pensou na medicina como uma extensão das atividades que já exercia: costurava galinhas, cavalos e pombos. "Muitos morreram nas minhas mãos, mas depois de muitas tentativas consegui aprender sozinho a salvar vidas!"
No verão costumava ir caçar coelho com seu pai que acabou, por distração, atingindo o rabo do cachorro da família. Naquela hora Seu Ítalo percebeu que não conseguiria costurá-lo e a única coisa que conseguiu criar foi a rima da consolação para que o cachorro pudesse recitar quando lhe devolvessem sua canina voz:
Dr. Teotônio, que descuido, no meu rabo atirou
Ave Maria, misericórdia, veja só como ficou
Meus amigos vão zombar, vão dizer que é esquisito
Pois meu rabinho, coitadinho, agora é tábua de pirulito
Ave Maria, misericórdia, veja só como ficou
Meus amigos vão zombar, vão dizer que é esquisito
Pois meu rabinho, coitadinho, agora é tábua de pirulito
Foi logo depois da tragédia bucólica que descobriu sua mediunidade. Tinha o costume de pegar a canoa e ir pro mangue caçar. Certa vez engatilhou seu rifle calibre 22, mas por uma oxidação precoce a arma sem querer disparou contra seu próprio queixo. Sentiu a segunda maior dor da sua vida e enquanto se apalpava buscando estancar uma possível hemorragia reparou o projétil intacto no fundo da canoa. O espelho d'água lhe refletia inteiro. "Milagre! Milagre!" Quando um índio lhe apareceu em pensamento e disse ser o Pai dos Mangues e que pra muitos acontecimentos da vida havia pouca ou nenhuma explicação.
Na década de 60, morando em São Paulo, foi internado num hospital por não ser mais compreendido socialmente. "Desumano!" e sentiu a primeira maior dor da sua vida. "Não recomendo choque elétrico para ninguém, nem para os doidos." Sua mãe já falecida lhe apareceu em carne e osso no momento em que seus músculos se contraíam de dor e lhe disse que aquela seria a última vez em que ele estaria num hospital. Seu Ítalo nunca mais adoeceu na vida.
Já se aproximava do horário de almoço quando confessou que havia ido ao meu encontro por indicação do guarda florestal. Queria ver os animais e as plantas, mas acabou se demorando entusiásticamente que todo o resto deixou de ter importância. Por fim disse "Até amanhã, afinal, essa ginástica é indispensável na minha idade."
¹: "Quem teria criado esse labirinto de incertezas, esse templo da presunção, essa jarra de pecados, esse campo semeado de mil ardis, essa porta do inferno, essa cesta transbordante de astúcias, esse veneno que parece mel, essa corrente que prende os mortais à terra: a mulher?" Trecho de Zorba, o Grande - Nikos Kazantzakis.
5 Comments:
Seus textos são um primor! É invariável, sempre me deleito ao lê-los.
Parabéns!
Muito bom, fazia tempo que não vinha aqui.
Mudei de endereço, Laka. http://gabrielgalvao.wordpress.com/
Que MARA!
Lendo seus textos, consigo aliviar um pouco da saudade que sinto... e eles são cada vez melhor!!!
Parabéns minha eterna irmãzinha... AMO!!!
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