verdade viva °°°: março 2007

30.3.07

Falava dela com tanto tesão, com tanto entusiasmo, que acabei esquecendo o objetivo daquela conversa que há tanto tempo queria lhe falar. Tinha horas que até fechava os olhos. E quando fazia isso era quando eu mais sentia dor. Parecia que visualizava-a nua por detrás de suas pálpebras, e quando abria os olhos e se deparava comigo, franzia a testa, respirava pausadamente e me fazia perceber o quanto me amava como a uma irmã e o quanto eu estava sendo importante naquele momento. Mas eu não queria ser importante naquele momento.

28.3.07

Agora, torta na minha embriaguês torta, sento-me ao lado de fora, maltrapilha abaixo da janela e fico ouvindo o som das gotas que caem barulhentas, pingam no chão, na minha cabeça, na minha face, na plantinha encolhida de frio. Essa chuva de todos os dias, de todos os anos, que não quer se conter. Lágrimas que escorrem involuntariamente unindo-se à chuva e limpando meu rosto outrora recoberto por pó de arroz. Eu, trocando calor (o corpo quente e o chão tão frio) , transpiro de medo e ansiedade. Jogo pelo buraquinho da janela uma pedrinha que sorrateiramente alcança o espelho e destrói a vida daquele objeto sugador de almas alheias. Posso ver por aquele mesmo buraquinho os estilhaços e minhas mil faces, e em cada face os sete anos de azar. Por sorte um pedacinho do vidro caiu junto da parede, e o buraquinho da janela tornou-se grande a ponto de conseguir alcançar aquele caco com meu indicador direito. Trago-o para mim. Por hora enxergo apenas um dos olhos, piscando cheio d'água e rindo de si mesmo. Enxergo também meu lábio arroxeado de frio, que molhado (não sei se pela chuva, pela lágrima ou pela saliva) chora de si mesmo. E é tão estranho olhar meus pedaços partidos... Enquanto a chuva cai, tento imaginar uma maneira de aprisionar novamente o meu medo. Eu tento buscar uma solução para a derrota sobre mim mesma de todos os dias. Busco à duras penas uma saída, um esconderijo onde eu possa me manter protegida daquela chuva. Quero só um refúgio, alguém que segure minhas mãos e pacientemente me ajude a colar minha alma ainda quebrada em pequenos cacos. E que esse alguém não se importe com as cicatrizes que certamente ficarão expostas na minha nova imagem reconstruída. Quero alguém para manter a rosa cor dos meus lábios, e que retire sorrisos deles. Que me olhe nos olhos e encha-os daquela água alegre que todos nós choramos algumas vezes, rindo. Que me traga o sol e que pule as sete ondas em qualquer ocasião. Que me conte histórias e que faça histórias comigo, histórias para serem contadas em qualquer estação, para qualquer ser: animado, inanimado ou desanimado. Mas se não houver de ser assim, poderia ao menos alguém me emprestar um guarda-chuva, por gentileza?

16.3.07

Macaco ônibus

Lá se vai o ônibus

Saltando de galho em galho



Carrega a menina, carrega o rapaz

Mas Dona Amélia, coitada, ficou para trás.

8.3.07

confissões

de repente eis que eu descubro o medo
aquele mesmo, que aprisionei por querer
dentro do pedacinho de cristal
eu sabia que aquela pedrinha todos os dias eu teria que proteger
para não sofrer nenhum mal

mas teimei em carregar comigo onde quer que fosse
e caiu a primeira vez, mas como por milagre não quebrou
caiu n'água

mergulhei bem lá fundo, onde a pressão machuca o peito
e trouxe de volta das profundezas
e o guardei de outro jeito

deixei o cristal bem no alto do armário
onde só as minhas mãos poderiam alcançar
mas o passarinho sem ninho foi lá em cima cutucar
e com o bico empurrou
e caiu a segunda vez, mas como por milagre não quebrou
caiu no colchão

tão cheio de algodão que a queda amaciou
e o medo estava preso apesar da agitação
dei vivas às nuvens, e até ao meu São João

procurei, então, um novo jeito
pra prender aquele medo que não queria se conter
e no bolso da calça mais velha do vovô eu estava a esconder
e os anos passaram-se
e chegou o dia da grande festa
fantasia todos tinham que ter

e o rapaz chegou aflito, numa eterna agonia
não sabia o que vestir, não sabia o que trajar
eu de tola dei a idéia: por que no tempo não voltar?
se vestiu anos 18, só havia uma calça a usar
e descobriu meu medo no bolso fundo
e por não o conhecer só fez por detrás do muro jogar
e o que aconteceu?
o medo ganhou o mundo

dessa vez não houve milagres, pois no asfalto se quebrou
senti meus olhos cheios d'água
o medo se libertou.