verdade viva °°°: agosto 2009

23.8.09

[Hipotético]


"Me leva para o mar quando a chuva chegar.
"


Não tive medo quando passei por cima do meu orgulho, quando dissimulei o meu caráter, quando travei discussões sarcásticas e arrogantes comigo mesma, quando menti ou ultrapassei os limites da vergonha na cara.
Eu continuei transpirando em segredo e ficando com as pernas bambinhas, meu Deus. As mãos geladas. O coração que batia forte e apressado parecia querer fugir do meu peito e se acalmar sob o teu.

Não tem jeito. Você é o meu quarto, banheiro e sala de estar. Meu jardim, garagem, quintal. Minha cozinha, meu corredor. Meus livros, discos, quadros e poemas. É o meu xodó, o meu dengo, o meu porto seguro.

Te cantar Marisa, Caetano, Lenine ou Cazuza faz sentido.
Ser teu pão, ser tua comida e todo o amor que houver nessa vida.

Colorir tua pele com o meu leite. Me marcar em teu corpo.
Tomar do teu vinho no teu beijo. Dormir no teu colo, meu desejo.

Eu sei que você sofre quietinho a possibilidade de nunca mais receber tanto amor, assim, cochichado. E é por isso que já ficou tarde demais pra gente ir embora um sem o outro.

Por isso não vá, não me deixe nunca, nunca mais...

17.8.09

A última coisa que eu queria ter dito era que a culpa do meu nervosismo provinha da Tensão Pré Menstrual - que era fato, mas eu acabei tirando a culpa que devia ser de outrém para jogar em mim mesma. Babaquinha, assumo. Mas o sono me embalou mais brandamente e consegui calmaria após ler um Te amo da menina dona das pernocas mais nocas que há neste litoral. Essa mesma menina que enxerga uma cor azul-batata (?) após um beijo hipotético.



Hoje eu acordei mais perceptiva que de costume. E mais sensível até, ouso dizer. Mas não quero atribuir à TPM qualquer melhora significante da minha forma de destacar cenas que passariam desapercebidas em qualquer outro dia mais comum.

O que quero dizer é que vou enumerar 10 das 5.001 manifestações repentinas de brilho que aconteceram das 7:44 às 11:52 da manhã:


1. Percebo uma moça de olhos claros, cabelos longos e reluzentes, de seios fartos e nádegas grandes. Moça esta que mais parece uma atriz de cinema americano mas que não passa de uma vendedora de frutas da estação com sua clientela que vai de crianças até adultos, mas voluntariamente sempre homens.

2. Acolá vão as irmãs anãs que caminham nos horários mais quentes do dia com sandálias brancas de borracha anti derrapantes.

3. Constato que o sol tapeia o lado direito do meu rosto todas as manhãs enquanto o vento tenta mascarar essa violência gratuita.

4. Escuto sem interesse uma velha música popular enquanto percebo os olhos rasos d'água de quem guia o veículo automotivo ao meu lado.

5. Noto a sutileza com que esse mesmo guia entorta suavemente o pé que toca a embreagem.

6. Bocejo três vezes antes de optar por ler um livro e ter a presente certeza de que livros não são brinquedos.

7. Vejo, apreensiva, uma cadelinha prenha (ou num estado pós materno) comendo amendoins completamente despreocupada, alheia ao perigo de estar na faixa central de uma via pública urbana bem movimentada.

8. Sorrio ao notar o furto de uma rosa (que estava à venda numa loja de paisagismo) por uma criança que a oferece inocentemente à sua mãe. E sorrio novamente com uma vergonha alheia enorme ao traduzir que, ao ter percebido o fato, a vendedora correu tímida até a mãe da criança e tomou-lhe penosamente a rosa de suas mãos.

9. Ouvi as asperezas que denunciavam a insatisfação de um velhinho que cochilava e assustava-se com os solavancos do transporte público.

10. E lá no alto o casal de bem-te-vis que pousavam elegantes sobre uma antena de TV.



Encontrei no contexto particular de cada memória um pouco da graça que havia se expulsado dos olhos da minha rotina.

15.8.09

Nos dias ímpares ele era o responsável por carregar os carrinhos de folhas e galhos para uma área destinada à decomposição de matéria orgânica. Nos dias pares ele ficava riscando a terra com uma ferramenta engraçada, movendo as folhas no ritmo do bolero que sempre cantarolava. Nas horas vagas de todos os dias ele vagueava dando ordem aos troncos das árvores centenárias que caíam devido às fortes rajadas de vento ou tempestades oceânicas persistentes.

Nos fins de semana ele bebia. E num desses fins de tarde - era um sábado - entrou numa loja que encomendava forros de gesso para construções civis e, embriagado, ficou insistindo que colocassem a dose da cachaça e chamassem a dançarina para acompanhá-lo. Perceberam o erro? Chico achou que tinha entrado no "Forró do Gerson". Tudo bem, a piada é caipira e inverídica, mas bem cabe no perfil bêbado do Chico.

Quando sóbrio sempre falava de amor.
Um dia o Chico me disse que devíamos casar apenas se sentíssimos amor. E que devíamos descasar se deixássemos de senti-lo. E que só deveríamos nos casar de novo se sentíssimos que íamos enriquecer. E descasar novamente se sentíssimos que íamos empobrecer.
Chico já está no 4º casamento e continua pobre.

Justo. Justíssimo, Chico.

6.8.09

Ela acha que eu esqueci.

Sim, eu lembro como começou. Começou quando há muito tempo não acontecia nada.
E lembro do adjetivo até hoje: nerde alternativa. Talvez ela nem se lembre mais disso... Como talvez ela nem se lembre de tudo o que ela sabia que tinha que fazer, mas que não tinha coragem.

Lá pelo finalzinho de junho, bem na época em que todos só sabiam falar do Michael, a gente gastava prazerozamente alguns terços de hora conversando outras lorotas, como por exemplo, faltas que eram justificadas pela greve dos ônibus ou o prazer pessoal em pronunciar a palavra "birra" ou "capciosa". E havia uma preocupação em trocar segredinhos sobre namorados, ex-namorados, desejos, desvontades ou até problemas de saúde.
Não, não nos fizemos melhores amigas e nem nos fizemos íntimas. Mas seguimos direitinho o "fique à vontade" - expressão conhecida de quem visita a casa de alguém.

É quando a gente escolhe um estranho pra desabafar e esse estranho, no fim das contas, parece o nosso quarto, o nosso travesseiro, o gibi que a gente carrega pro banheiro...

Saímos umas três ou quatro vezes e nunca só nós duas. Alguma diferença pouca de idade, mas muita diferença no sentir. Tive até medo que as minhas palavras tornassem ela um ser humano rude, menos expressivo e menos complacente.
Um dia, não com essas palavras, ela basicamente disse pra eu deixar de ser boba e amar novamente. Eu falei que a questão não era falta de amor, mas aí senti uma vergonha tão grande de uma possível mentira que resolvi me esconder atrás de um outro assunto, como ter orgulho de conhecer alguém que é campeã em natação, por exemplo.

E daí me senti admirada quando ela disse:
- Deixa eu te pedir um presente de aniversário? Escreve pra mim.

Minha relação com as palavras é dura, que nem a vida. É tão dura que chego até pensar que é injusta, que nem a vida. Quando ela se queixava que escrevia demais e compulsivamente eu me queixava que escrevia de menos e que sentia inveja dos que escreviam demais. E sinto mesmo.
Todos os dias uma fotografia nova é tirada pelos meus olhos, e todos os dias eu sinto vontade de escrever sobre essa imagem, mas me falta muito mais que as palavras, inspiração. E eu acabo esperando algo fuderoso, sensacional, fulminante acontecer para eu transformar numa historinha meia-boca, onde parte das emoções que eu sempre pretendo passar acabam sendo perdidas.

"Pois cada um de nós sofre com a idéia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de palavras.
Quando um dia (isso acontecerá logo) todo homem acordar escritor, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais."
¹

Enfim, hoje eu escrevo pra ela com um carinho enorme, mas não com facilidade. Eu poderia comprar algum frufru bacana pros 19 anos e 9 meses que ela completa. Um vinil dos Beatles, um copo do corinthians ou um chaveiro com a foto do Michael Jackson, mas não. Eu me resumo em palavras nada bem elaboradas chamando atenção para uma demonstração pública de afeto.

Parabéns à doce Ana Camila.
E lembre-se: Não tenha medo de não ser tão criativa. Não é de fome que você vai morrer.




¹ Milan Kundera em O livro do riso e do esquecimento.