verdade viva °°°

21.5.09


Segunda-feira a prefeitura de Parnamirim me convidou pra trabalhar com o cadastramento dos interessados em um novo programa do Governo Federal: Minha Casa Minha Vida. Podem participar famílias que possuem ou não renda mensal (de até 3 salários mínimos) e o objetivo é construir uma base de dados dessa população mais carente pra que as famílias selecionadas através da Caixa Econômica Federal consigam ter suas próprias casas por um custo baixo, bastante baixo. Cerca de 19.000 casas serão construídas para este fim em alguns municípios do RN.

Mas não é disso que quero tratar.

Eu tô começando a achar interessante o fato de atrair pessoas incomuns. Durante os dois primeiros dias no novo emprego nada me emocionou mais que um copo de suco de goiaba e biscoitos cream-cracker. Lá na farmácia eu não tinha regalias, só tinha um ar-condicionado. Lá no Parque eu não tenho regalias, a não ser que eu as compre. Trabalhar com cadastramento em Escola Municipal tem sido deveras revigorante. Hoje rolou até um sanduíche natural com guaraná. Enfim, descartando a subjetividade, eu estava falando de pessoas incomuns.

Incomum. De cara foi possível detectar alguma deficiência na maneira de olhar e de caminhar. Chegou dando ordens:
- Faça meu cadastro, minha filha. Faça logo que eu tô passando meio mal.
- Eu preciso da xerox da sua identidade, do seu CPF e do seu comprovante de residência.

Não me deu a mínima atenção e sem vírgulas desembestou a falar:

- Mande ligeiro aquele homem lá no portão tirar as cópias. Tá muito calor. Eu tô meia doente. Saí de casa aperriadinha atrás dessa sopa.
- Sopa???
- É. A sopa que vocês vão distribuir.
- Senhora, não existe nenhuma sopa. É um cadastro que a senhora faz pra tentar conseguir uma casa.
- Pois faça aí meu cadastro pra receber a sopa.
- Senhora, não tem sopa.
- Me espere que eu vou tirar as cópias.

Saiu.
Em 15 minutos ela me volta cheia de papéis na mão. Tirou cópia até de cupom fiscal e jogou tudo em cima da mesa me mandando procurar o que interessava.

- Dona Jucilene, preciso do seu telefone para contato.
- É, tá aqui ó.
- Não, dona Jucilene. Esse número é o seu CPF.
- Então é esse aqui.
- Não, senhora. Esse número é a data do seu nascimento.
- E o que é que você quer?
- O seu telefone.
- É 123456789-10!

Exatamente. Ela contou até 10 e repetiu três vezes pra que eu me certificasse que era aquele mesmo.

Decidi fazer o cadastro dela sem o telefone. Já tava começando a simpatizar com aquele olhar perdido, sonolento, que nunca, nunca me olhou nos olhos. Só olhou o chão. Ao final recomendei que retornasse com o telefone para contato ou não serviria de nada ter feito o cadastro. Ela perguntou contente:

- Deu certo? Vou receber a sopa agora?
- Senhora, não tem sopa.

Jucilene respirou nostálgica e me contou que quando era criança apanhava dos irmãos até sangrar, que várias vezes ouvia-os confabulando um homicídio e que quando saía correndo nua pela casa eles iam atrás dela jogando pedras como se ela fosse bruxa. O costume de levar pedradas persiste até hoje. Aos 46 anos, Jucilene acorda quase todos os dias se protegendo da chuva de pedras que costuma ser a diversão dos sobrinhos.

Por ter sido nosofóbica quando menina, acabou adquirindo inconsciente e involuntariamente um leve retardo mental que não a impediu de trabalhar. Covardemente a empresa forçou-a a aposentar-se por invalidez antes dos 30 só porque ao invés de pregar botões nas camisas estava pregando tostões.

Contou que mora na Avenida Maria Lacerda e que num desses dias um assaltante invadiu sua casa com um canivete:
- Não sei como alguém comete uma coisa errada dessas. Acho um absurdo assaltar. Um grande absurdo.

Nesse momento ela enrolou um pouco a língua pra falar mas parece que o assaltante roubou uma camiseta da Igreja Renascer e um rádio antigo sem pilhas.

Mas a maior preocupação atual dela era com os coelhos que estavam aparecendo mortos sem nenhum motivo aparente. Nesta manhã foram três: um siamês e dois pardos.

Olhou a hora e notou que estava se demorando mais que o previsto. Com os olhos cheios d'água agradeceu a minha paciência com um aperto de mão e finalizou:

- Estão envenenando os pobres coelhos. Eu vou parar de comer carne. Agora eu só quero sopa.


* Ilustração: The Last Rabbit. Ryden, M.

8 Comments:

At 21.5.09, Blogger Unknown said...

Ou seja, nada mais de pedir Lapin à la moutarde...

 
At 21.5.09, Anonymous Any said...

Interessante...

 
At 22.5.09, Blogger Bruno Costa said...

Deliciosa sopa de letrinhas...

 
At 22.5.09, Anonymous Jah said...

Tadinha!

=/

 
At 25.5.09, Blogger Camila Costa said...

Muito bom o post, haha, vou adicionar no meu blog o su link, pra passar sempre por aqui ;)

 
At 27.5.09, Anonymous Nani said...

tem muita gente especial nesse mundo...

 
At 30.5.09, Blogger Moreno said...

Cara, tipos, comassim a velha...era...é...apedrejada???? como assim APEDREJADA? Assim, descontando todos os outros absurdos que ela contou...é, ela contou uma porção de coisas, e não dá pra saber o que é ou não verdade... Mas ah, se eu pego um moleque jogando PEDRA numa velhinha! Ainda mais uma velhinha engraçada assim. 123456789-10! Rá! Tomem ESSA, operadores de telemarketing! Sopa que é bom, ninguém dá.

Acho que eu nunca comi coelho, e isso traz algumas questões... Será que os coelhos que morreram eram carnívoros? Será que ela se alimentava exclusivamente só de coelhos e sopa(que eu presumo ser sopa de cenoura)? Putz, será que os caras realmente APEDREJARAM ela? (isso realmente me revoltou.)

Long life to Jucilene.

Esse texto foi realmente divertido, Nessa.

:*

 
At 1.6.09, Blogger  said...

Quando trabalhava na Defensoria Pública da União na Deodoro, vez ou outra era surpreendida por "incomuns" como sua historia. Triste realidade...

Lembrei tbm que meu irmão em 2006 ganhou de presente um coelho, coitado do coelho... mamãe deu para nossa empregada da casa de praia em Zumbi, rsssss... lembro que um dia ela nos ligou chamando para irmos comer uma deliciosa e macia carne!! Meu irmão ficou tão triste... :(

 

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